quarta-feira, 28 de março de 2007

6. Os ganhadores

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Kwadi gostava de ficar no pequeno lago perto da estação, tanto que já começava a enraizar-se na pedra onde se sentava desde que chegara à cidade, no mesmo dia que Teresa. Além do fresco, ali aprendia muita coisa, bem mais do que na longa e demorada caminhada, que fizera da tribo até à cidade. Tal como Teresa, e as bonecas, Kwadi já sabia contar, mas bem mais. Contava em português e em umbundo até à dúzia. Um catete, dois cavali, três catatu, quatro cakwãla, cinco catãlo, seis cepandu, sete cepandu vali, oito celelãla, nove ceciya, dez cekwe, onze cekwi la mosi, doze cekwi la vali. Era o que ouvia repetidamente, da quitandeira que passava à tarde com o cesto de camarões ainda a espernearem, e de novo, mais tarde com a quitanda vazia.

Logo depois da segunda rua que estava atrás do pequeno lago, era a praia com a areia em duna, como um pequeno morro. Poucos eram os que para ali iam esticar-se ao sol ou nadar. Era mais uma praia de peixe, de pequenos negócios de mar. A meio da manhã e a meio da tarde chegavam os barcos de pesca, que tinham ido até mais ao largo do Atlântico. Os pescadores puxavam as redes e as quitandeiras aguardavam para encher os seus cestos com peixe ou camarão ou um pouco de tudo. Depois, espalhavam-se pelas redondezas até terem a quitanda fazia e os dinheiros num lenço que enfiavam entre o peito.

Déte, a quitandeira, fazia as contas sentada na borda do lago em cuja pedra Kwadi sentava. Contava os dinheiros à sua frente e por vezes falava-lhe de coisas da vida, do peixe, dos custos das coisas no armazém e do marido que trabalhava no porto mas não sabia segurar o dinheiro. Tinha dois filhos na escola e um mais pequeno que ficava com a avó enquanto Déte vendia os camarões. Vendia rápido. O mais que demorava era de casa até à praia e depois a voltar para casa. Não tinha a felicidade de outras quitandeiras que moravam mais perto do negócio. As da Cabaia é que têm sorte, pegam o peixe lá mesmo e vão vender no Compão que é perto – disse a Kwadi, uma vez. Ela morava na Bela Vista e vinha ali ao negócio, porque tinha um maximbombo linha directa. Mas tinha de lavar a quitanda para a volta, senão não a deixavam entrar. E gastava dinheiro na viagem.

Queria mudar-se para a Cabaia, para não gastar no maximbombo. Mas na escola do Compão não havia ainda lugar para os dois filhos estudantes e Déte não concebia a ideia de os deixar fora da escola. Acreditava que pelo menos um deles iria ser bom aluno e ganhar o prémio de estudar na Metrópole que o presidente dava. Na verdade não sabia bem qual o presidente que dava ou exactamente o que dava, mas estava confiante no tal prémio porque conhecia a família de um que o tinha ganho. O estudioso era o Kalô Neves, um moço de óculos que logo após a festa do seu mérito lá na sanzala, partira para a Metrópole a expensas do Estado, com mais dois brancos de segunda, também de óculos. O Lito Ortega arraçado de espanhol pelo lado da avó materna e o Dani de Sá, quarta geração de portugueses em Angola.

À época, a bolsa de estudos era atribuída exclusivamente ao mérito e não a carência económica ou de qualquer ordem. Oferecia ainda a vantagem de ser praticamente um passe para longe da guerra e das obrigações militares inerentes a qualquer mancebo, mais ainda dos nascidos em África. Kalô, Lito e Dani conheceram-se no cais, à entrada do navio e lá foram à aventura nos seus pouco mais de quinze anos e o quinto ano dos liceus concluído. Que tinham ido os três no mesmo barco, Déte tinha certeza porque se dera ao trabalho de vir lá do morro da Bela Vista até ao porto verificar se o Kalô ia ou não ia no navio. E foi mesmo! Ia todo bem empacotado, feito um calcinhas, no fato que usava na missa de domingo, e no dia em que teve os exames importantes que lhe fizeram ganhar a bolsa.

O Padre António comprara-lhe o fato com o dinheiro de Deus – dizia Déte. Além disso, o religioso acompanhara Kalô até ao porto, junto com a família, um ou outro amigo e alguns vizinhos curiosos como a quitandeira. Pouco depois dos moços subirem a escada do navio chegou em alvoroço uma família de mulatos que se despediam às pressas da Joana Ribas outra das ganhadoras, que se atrasara a marcar presença no navio. Mas ainda assim, também foi de viagem, com toda a família a acenar do cais, de braços no ar, até quase o navio passar para lá das Portas do Mar.

Kwadi ia contar à quitandeira que conhecia Teresa que tinha vindo para a escola, e no entender de Kwadi também havia de ganhar o tal prémio, quando tivesse a idade do Kalô e dos outros que Déte falava, mas esta saiu em correria a gritar:
- Aiué maximbombo, espera, espera, mamauéé.

O maximbombo esperou, Déte subiu e lá foi aiué...

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Glossário:

. Maximbombo – ónibus, autocarro.
. Quitanda (ou kitanda) – cesto ou espaço onde estão ou estarão coisas, geralmente mantimentos frescos para negócio.
. Quitandeira(o) (ou kitandeira(o)) – pessoa que usa a quitanda no exercício de um negócio frequente.
. Sanzala – bairro de habitações modestas.
. Umbundu – uma das línguas de Angola, a segunda em número de falantes, a seguir à língua oficial, o português, e de maior incidência na região centro e sul do país.
. Um calcinhas – termo usado para referir um indivíduo do sexo masculino bem vestido quando isso é raro nele, em situação que parece inadaptado a essa roupa melhor ou mais fina.
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2 comentários:

Duca disse...

Quando cheguei a Portugal, durante muito tempo chamava Maxibombo aos autocarros. Com o passar dos anos fui perdendo e esquecendo os termos que usava na meninice para dar lugar aos de cá.
Aiué mamauéé que esta história está cada vez melhor! :)

Unknown disse...

Continuo a ler... e a gostar.

:)