terça-feira, 27 de março de 2007

5. O cinema

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Teresa tinha gostado da viagem de comboio. Não tinha sido a sua primeira, mas fora a maior, muito maior de todas as suas viagens. Agora no Lobito, já lhe falaram dos barcos grandes, grandes, mas ainda não os vira. Ouvia-os apenas, no som rouco e forte, a anunciarem chegadas e partidas. Vira os aviões a voarem sobre a cidade. Coisas pequenas lá muito em cima. Na fazenda não se viam. Nem os flamingos que pareciam maiores que os aviões lá no céu. E mais bonitos, cor de rosa. Não são “bem cor de rosa”, dissera-lhe o Henrique, seu colega de hospedagem na casa da “Senhora Directora”. O Henrique tinha sete anos, estava na segunda classe, não era bom estudante, nos dizeres da directora. Mas era um menino bom e esforçado. Não dava é mais, coitadinho – dizia também a directora.

A casa da directora era no Lobito Velho, um bairro da cidade mais perto dos morros, do outro lado da baía, contrário ao do porto e da estação de comboios. Um casarão antigo, com um grande quintal fechado por muros altos, a esconder a horta, o pomar, o galinheiro e os anexos onde moravam a lavadeira, a cozinheira, o horteleiro, suas famílias e também o enteado da directora, que tinha dezanove anos e era a cruz que ela tinha de carregar, como costumava lamentar-se. Era o Jorginho. Tinha, no entender da directora, dois hábitos nefastos: a indisciplina e a soberba. Além disso, gostava de dizer aos hóspedes infantis que a madrasta directora era uma bruxa má e os iria meter dentro do fogão, para os cozinhar e encher a barriga dos jacarés do rio Catumbela.

De início, Teresa preocupou-se com esta história, mas cedo se apercebeu que a directora não era assídua da cozinha. Além disso, a cozinheira Domingas dissera-lhe que ela era bruxa má sim senhora, mas não sabia cozinhar. Informara também, que enquanto dona da cozinha, ela Domingas, não deixaria que lhe estragassem o fogão com meninos lá dentro. Já eram crianças grandes, não cabiam num fogão daqueles. Teresa sossegara! O Henrique corroborara. E depois, já lá estava há mais dum ano e continuava longe da barriga dos jacarés, mesmo não sendo um bom estudante.

Também há mais de um ano, estavam na casa da directora o Renato e o Norberto. Havia ainda a Helena mais crescida e muito boazinha para Teresa. Estava na quarta classe, tinha nove anos e no ano seguinte iria continuar os estudos na Metrópole, num colégio interno de Madres religiosas. Teresa dividia o quarto com ela. Os meninos tinham outro quarto. Tinham vindo todos de fazendas no interior, mas não se conheciam antes de ali chegarem. De manhã cedo iam todos num carro grande para o colégio, não muito longe. Pouco depois do meio dia, regressavam para almoçar e voltavam ao colégio antes das duas da tarde. Às cinco acabava a escola, mas ainda tinham de fazer os “deveres” e estudar sob a supervisão da directora ou da Menina Judite, depois do lanche até à hora do jantar.

Isso era feito já em casa, na sala de estudos que tal como a sala da directora no colégio, estava forrada com estantes cheias de livros, quase todos sem figuras nem desenhos. A Menina Judite era uma professora do colégio, solteira, que morava na casa da directora desde que chegara da Metrópole há 3 anos. Teresa achava que ela não era bruxa como a directora. Os meninos, a Helena e a cozinheira Domingas concordavam. Jorginho também concordava, mas neste assunto, sorria sempre de um modo trocista. O marido da directora, senhor Antunes, também morava lá em casa. Era um avô bonzinho que lhes trazia rebuçados às escondidas da bruxa má e os levava ao cinema, às vezes. Teresa já tinha ido uma vez, num domingo à tarde. Esta era sua terceira semana no Lobito. Aos sábados de manhã havia escola. De tarde tinham deveres de escola e de casa. Domingo de manhã iam todos à missa na Caponte e de tarde brincavam ou passeavam com o avô Antunes, que era mais novo que o pai da Teresa.

O cinema – filme, corrigiu o Renato – que Teresa foi ver era a preto e branco com um homenzinho de bigode pequeno que andava com os pés de lado e tinha uma bengala que rodava todo o tempo. Havia um menino que era pobre e um cãozinho. Filme do Cháárlôu repetira-lhe Helena, que sabia das coisas. Seja! Teresa gostou desse “cinema” – persistiu! – apesar de ter ficado triste quando o menino também ficou. Chorou muito, saiu do cinema com os olhos inchados e finou a mágoa a ensopar um pacotinho de pipocas caramelizadas. Outras vezes ficara triste por estar longe da fazenda, do pai e do gato Bolinha. Dormia com as duas bonecas Elisa e Luzia, que pareciam felizes por estarem na cidade. Elisa já sabia contar até 6, devagar, e Luzia mais esperta contava até 9 sem se enganar. Luzia era boa estudante quando Teresa brincava de professora. Elisa era como o Henrique, boazinha e esforçada. Por vezes, em pensamento, o menino grande da estação também vinha brincar.

Então, o brilho nos olhos de Teresa ganhava dos meninos de Lucanda na chegada do comboio.
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5 comentários:

Citadina disse...

Parabéns pelo blog!
Estou a gostar imenso da história. Sente-se nela o calor e o cheio da terra africana.
Aguardo com expectativa os próximos episódios.

Kwadi D. disse...

Os meus agradecimentos pelo seu comentário Citadina.

Kwadi D. disse...

A foto deste post deveria ser de um cinema mais antigo, com arquitectura colonial ou dos anos 40s-50s e não a que lá está do Cine Flamingo. Uma foto do Cinema Imperio seria mais apropriada.
Vou ver se encontro...

Duca disse...

...um bairro da cidade mais perto dos morros, do outro lado da baía, contrário ao do porto e da estação de comboios.

Tenho a ideia de que esse bairro era o Liro, estou errada?

O cinema Flamingo era um cinema fantástico! Era enorme, com uma parte coberta e outra descoberta, um écran gigantesco e esplanadas, jardins e, se não estou em erro, um lago.

O cinema Império era o cinema onde na minha meninice ia às matinées. Tinha fotos por todo o lado de actores e actrizes dos anos 40 e 50. Foi neste cinema que me recordo de ter visto "Música no coração". :)

Kwadi D. disse...

Pronto, cinema mudado. Já lá está o Cine Impérium.
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Duca, eu pensei no Lobito Velho e não no Liro, mas também podia ser.