terça-feira, 27 de março de 2007

4. Uma festa

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O interior da carruagem restaurante reluzia em metal prateado. José ficou boquiaberto. Nada se assemelhava à linha das Beiras, lá na Metrópole, nem ao comboio para Lisboa. Este aqui, tinha menos madeiras e mais aços. E as madeiras eram autênticos espelhos. O conforto era maior também. Dos lados da carruagem, em cima, em vez de estrados de madeira corrida de lés a lés, havia em descontínuo uns aros metálicos brilhantes que formavam-se em cestos para quem lá quisesse pôr as bolsas ou alguma mala pequena, das inseparáveis. Mas ninguém os usava no restaurante. Estavam todos à confiança. O demais das laterais abria-se em janelas e na frente da carruagem espelhos ladeavam a porta de acesso ao restaurante.

Ninguém se sentava sozinho, mesmo que viajando sem companhia. Alguém chegava, apresentava-se, era convidado a sentar no lugar vago à mesa e a conversa fluía. Os poucos minutos que José tinha das Áfricas, já lhe haviam granjeado a convicção que “estas gentes”, fossem de que cor fossem, eram muito dadas às falas e tinham assunto sobre praticamente tudo. Pareciam felizes com isso. No entanto, falavam num tom baixo sem grande agitação, pouco comparável ao que presenciara no comboio das Beiras a Lisboa onde embarcou no Vera Cruz, o navio que o trouxera a ele e mais uns mil. Alguns duzentos, militares. Destes, uns poucos vinham agora no comboio, mas todos à civil. Rapaziada animada. Alguns também lá das Beiras. No barco, tinha até encontrado um rapazola que ainda era seu primo afastado. O comboio parou. Perante o seu olhar de caso, Sebastião à sua frente, pausou a tagarelice com o velho Gonçalves e mais outros dois companheiros de mesa e informou:
- Costuma parar aqui à entrada da ponte do rio Cavaco. Uns segundos, pouco mais. É a chegada a Benguela.
- Rio?
- Ah, sim! Está é sem água. Mas na época das cheias parece um pequeno mar.

José, que não havia visto mar até se emborcar no navio, enfiou a cabeça fora da janela e viu pouco adiante mais uma ponte de ferro. Em baixo uma estrada larga de areia – era o rio. As margens eram verdejantes, com pomares, hortas, verdes a perder de vista.
- E bananeiras sem fim – disse Sebastião – mamoeiros também.
- Mamoeiros?
- Mamoeiros, papaieiras e muito mais.
- Que dizeis?
- Fruta! Da familia dos melões ou melancias, mas diferente. – Explicou Sebastião.
Alguns segundos após, o comboio retomou marcha e de cima da ponte, José vislumbrou pequenos lagos de água no meio da estrada de areia que era o rio. Num ou outro desses pequenos lagos, algumas mulheres nativas pareciam lavar roupa. Tinham os filhos pequenos amarrados às suas costas com um pano. De seguida, o comboio parou na estação de Benguela. Viu as acácias rubras cobrindo as árvores entrecortadas por uma ou outra palmeira. Muitas cores em África – pensou. Um dos funcionários do restaurante serviu-lhe o chá.

Ficou mais alentado. A conversa dos outros pareceu-lhe menos complicada.
- Quer então dizer que o Xebastião já estaba no Lobito há 2 dias?
- Três! Estive a tratar das encomendas – esclareceu Sebastião – nos armazéns da cidade. Para depois seguirem pelo caminho de ferro. Algumas coisas já vão neste comboio.
- De que encomendas se trata?
- Mantimentos, bebidas, tecidos, ferragens, quase tudo o que não temos na fazenda.
- Não têm mantimentos na fazenda? – Perguntou José, sem conseguir esconder alguma apreensão.
- Ora Sô Zé, concerteza que há mantimentos! O que eu queria dizer é das outras coisas que só se encontram na cidade. Bacalhau da Terra Nova ou da Noruega, peixe seco e de conserva, sal gema, açucar mascavado, whisky, vinho português ou da África do Sul.
- O Sbell não está mau. – Interveio um dos convivas à mesa.
- O amigo não me diga uma coisa dessas. Whisky não é uma coisa natural de ser feita em África! É concerteza uma zurrapa das boas. Quero lá provar uma coisa dessas. Nem pensar! Vejam só, whisky do Lobito. Como se já não lhes bastasse o vinho Caxi, outra boa zurrapa dos lobitangas, agora inventaram o whisky Sbell – disse o velho Gonçalves, rindo.
- É o progresso, é o progresso! Mas ainda assim digo-lhe que tem de experimentar o Sbell. Não é mau de todo. – Insistiu o conviva, rindo também com a casmurrice do velho.
- E sem esquecer que é o único whisky feito em todo o Portugal e Colónias é o Sbell. Um “scotch” puramente africano. Angolano! – Acrescentou Sebastião.
- Meus meninos, bebidas do Lobito, só a água do Jomba para fazer a digestão de uma boa moamba ou da feijoada da Maria do Silva na Cáala. E tenho dito! – Continuava sorrindo o Gonçalves, animado com a controvérsia.

A conversa continuou arrebatada. Quase duas horas de marcha depois, ao chegar a Lucanda, foram interrompidos pela barulheira vinda do exterior. Um bando de crianças pequenas corria atrás do comboio com mais três cães a juntarem-se à algazarra.
- Estes devem estar contratados pelo CFB em consórcio com o soba local para recepcionarem os viajantes da linha, à chegada a Lucanda. – Disse Gonçalves, rindo da criançada.
Quase todos da carruagem restaurante riram do comentário gonçalvino.
- O amigo tem razão! – Disse a rir, um de outra mesa. – Olhe, aquele ali – e apontou um dos garotos que corria lá fora, atrás do comboio – já o vejo nisto há pelo menos 2 anos.
- É um profissional! Comentou outro dos viajantes.
Os do comboio riam. Os pequenos fora do comboio, também riam. Os olhos brilhavam. À chegada diária do comboio, um Deus olhava para baixo e via a Lucanda no mapa divino. E também no mapa terreno, no Km 86 do CFB.

E era uma festa...

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Glossário:

. CFB – Caminho de Ferro de Benguela.
. Moamba – moamba de galinha é uma comida tradicional angolana, intensa em óleo de palma (denden) e gindungo.
. Zurrapa – coisa ruim, mal feita, quase sempre aplicado a bebida ou comida. Quanto melhor a zurrapa pior feita foi a coisa.
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2 comentários:

Duca disse...

Lembro-me que o meu pai dizia que o Sbell não era nada mau. Ele que era um verdadeiro apreciador de um bom scotch, não sei se o dizia para não desmotivar os orgulhosos lobitangas ou se falava sério. :)
Quanto ao vinho de Caxi que se a memória não me falha era feito de abacaxi, recordo-me de o ouvir dizer que vinho, só mesmo de uva.
Kwadi, acho que nem lhe passa pela cabeça o quanto me faz bem à alma ler estes seus textos! Obrigada.

Kwadi D. disse...

O vinho Caxi era feito de uma fermentação de cascas de abacaxi.
(Concordo com o seu pai - vinho, só de uva!)

Um dia destes a Teresa vai referir-se às cascas de abacaxi e talvez até comente com as bonecas.

:)

Duca, acho que nem lhe passa pela cabeça, o quanto me motiva a sua gentileza de comentar estes posts.

Os meus agradecimentos,
Kwadi D.