segunda-feira, 26 de março de 2007

3. O chegante

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O navio acabara de atracar. No cais, um sem número de gentes aguardava os chegantes, as notícias frescas e o suceder-se da última moda na Metrópole. Sebastião, um mulato estiloso e bem parecido mascava chuinga enquanto mirava, por detrás da discrição dos óculos Ray-Ban, umas miúdas dezassetinhas barulhentas que, ao que parece, esperavam uma tia. Meia dúzia de anos mais velho que elas, Sebastião esperava o padrasto, ou coisa que o valha, para encarreirar o homem “nas Áfricas”.

Quatro anos antes o pai falecera-lhe. Muito antes disso, havia casado com Dona Emília, fazendo desta a madrasta vitalícia de Sebastião. Por isso, agora esperava-lhe o novo marido para o acompanhar até casa, cerca de 500Kms para Leste. Sabia pouco dele – que era branco da Metrópole, das Beiras, que esta era a sua primeira viagem a África e a primeira a qualquer lugar, que se chamava José Vicentino Oliveira, que tinha-se safado à guerra por causa do pé chato, que entendia de gado e que soubera escrever ou mandar escrever uns poemas que haviam deixado derretido, o coração da sua madrasta.

Entretanto a escada principal do navio foi amarrada ao cais e logo depois, os viajantes começavam a descê-la seguidos do séquito de carregadores que anteriormente haviam subido para esse efeito. Ocorreu então a Sebastião que poderia ser complicado encontrar o homem no meio de tanta gente. Com esta preocupação dirigiu-se a um madié, branco de segunda, aparentemente lobitanga e mais ou menos da sua idade. Era lobitanga!

- O quê?! O gajo é a primeira vez que viaja?! E vindo lá da terrinha?! (Riu-se) Se conseguir sair do navio pelas próprias pernas já vai com sorte. Essa malta começa a vomitar cinco minutos depois dos navios largarem lá do Puto e só param uma semana depois de atracarem aqui. Fica de olho nos que saírem depois de todos os outros, com as pernas bambas, muito branquinhos e com ar de estúpidos, como boi a olhar para um palácio, que achas o gajo rapidamente. Geralmente desses, só vem uma dúzia em cada navio. Os outros ou são os de cá, ou vêm fazer a tropa, ou têm família e conhecidos à espera.

E assim foi! O lobitanga parecia vidente. Mais de uma hora depois lá chegava o Zé Vicentino muito pálido com duas malas a caírem-lhe pelos braços abaixo, poupando o angolar dos carregadores. Sebastião engoliu o riso gozador – yah, um “branco de primeira”, pensou. Fez um balão com a chuinga e estalou-o no ar. Depois continuou a mascar ostensivamente e com alguns ruídos estilosos. Lá cumprimentou o padrasto, ou o que seja, sem em momento algum demonstrar a menor intenção de o aliviar do peso das malas.

- Bochemecê é então o Xebastião?!
- Yah! – Respondeu Sebastião mascando a chuinga e dando um ligeiro gingar de ombros.- E adonde é o comboio?
- Uns 3 miutos de táxi.
- Bamos a pé. Não bale a pena gastar dinheiros no carro.
- Com este calor Sô Zé? Olhe que não é nada boa ideia depois da viagem que acabou de fazer. – Retorquiu Sebastião que não tinha intenção de se dar ao trabalho e menos ainda de raspar a sola dos sapatos novos.
José anuiu a contra gosto e lá foram de táxi.

Uns quinze minutos depois do comboio iniciar marcha, Sebastião resolveu dar mostras da educação que o pai lhe ensinara e tentou ser cortês para José Vicentino.
- Olhe, ali são as plantações de açucar do Cassequel. A refinaria é mais além, está a ver. É daqui que sai o açucar para a Metrópole. O Cassequel faz de Angola um dos maiores produtores mundiais. Já não sei se é o segundo, ou terceiro. Só o Brasil e Cuba são maiores ou estão a par. E agora está a ver o cemitério da Catumbela. Os gajos no Lobito não têm cemitério. Nascem muitos e quase não morrem. Os que bazam – e fez o gesto do além, algures no céu ou no inferno – vêm para este cemitério, uns 7Kms. Pronto! Chegámos a Catumbela. É uma vila antiga... com mulheres bonitas – disse sorrindo com malícia.

O comboio parou escassos minutos. Saíram poucos, entraram poucos. Continuou a viagem. Logo de seguida o comboio vibrou no ferro da ponte.
- Balha-me Deus, que bicheza é aquela?
- O quê? Ah! Os jacarés?! Aqui no rio Catumbela há sempre um ou outro. Já estão habituados. Não se assustam com o barulho do comboio na ponte.
- Olha quem é ele – interrompeu um homem de cabelos brancos e idade avançada que ia a caminho da carruagem restaurante.
- Oh Sô Gonçalves, o que faz o senhor aqui? – Respondeu Sebastião parando de mascar a chuinga enquanto se levantava e o cumprimentava sorridente.
- Vim trazer a Teresa para a escola. E tu meu malandro?
- Vim buscar o Sô Zé, o novo marido da minha mãe Emília – chamava assim à madrasta. Chegou hoje da Metrópole.
Feitas as apresentações e os cumprimentos devidos, dirigiram-se todos ao restaurante do comboio, com José a dizer que um chá ou um caldinho caía-lhe bem.

Afinal não mentira a Teresa quanto a não viajar sozinho, pensou o velho Gonçalves esboçando um sorriso.

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Glossário:

. Angolar – referente à moeda local, o escudo de Angola, à época.

. Chuinga – chiclete, pastilha elástica.
. Dezassetinhas – as que têm ou aparentam ter dezassete anos.
. Lobitanga – o(a) nascido(a) na cidade do Lobito.
. Madié – forma de tratamento entre os jovens de sexo masculino; cara, bacano.
. Puto – referente ao Portugal europeu.
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1 comentário:

Duca disse...

Delicioso. Tomei a liberdade de fazer um comentário sobre este blog no meu. Em http://tempusblogandi.blogspot.com/
Abraço