quarta-feira, 21 de março de 2007

1. O mesmo olhar

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O calor via-se em ondas sobre o chão, a caminhada já durava, durava... num olhar pareceu vislumbrar um recanto mais fresco. Tudo era novo, confuso, talvez assustador, mas sem leões a espreitar. Que terra era essa onde não se vêem leões e os homens não têm lanças? Outros bichos, estranhos zurravam num deslizar constante, mas ninguém os parecia temer. Um zurro maior estremeceu o solo. Deveria ser um bicho maior que elefante e ninguém fugiu. Havia árvores com copas verdes e um lago de água límpida, no meio uma pedra. Kwadi sentou. Coçou uma perna e olhou para o outro lado. Seria a casa do soba? Um soba de uma tribo importante e rica?

Em correria passaram alguns da tribo do soba da casa grande. Leões não se viam e os que corriam, corriam para o lado do zurro. Muitos outros vinham em sentido contrário, mas sem pressas. Um dos que iam, falou para os que vinham:
- O comboio já foi?
Outro respondeu:
-Ainda!
O bicho grande chamava comboio. Kwadi pensou – esse bicho não conheço. Estava melhor agora, sentado, e sabia mais um animal, comboio. Quando voltasse contaria aos da sua tribo. Eram poucos. Kwadi lembrava da infância quando eram mais, mas depois a seca fez muitos ir embora, atrás da caça. Ficaram os mais velhos e as crianças. Depois, outros mais se foram para casar em outras tribos.

Kwadi quis conhecer o mundo que pensava terminar pouco além do outro lado do rio, mas temeu ir por esse caminho. E se o mundo terminasse logo depois? Melhor seguir no sentido contrário. Encaminhou-se para norte. No dia seguinte viu as zebras e depois andou, andou, andou pela savana e por caminhos diferentes dos que conhecia. E agora sabia tantas coisas. O seu pensamento foi recortado por outros passantes.

- Veio do Chinguar?
- Vim de Dilolo. Ando há um mês nisto. Com paragem em quase todas as estações. Sou caixeiro-viajante. Fui negociar conservas em lata, da fábrica da Canata. Os gajos lá no mato, nem sabem o que é um peixe e a fábrica agora tem uma boa variedade de conservas. Até têm carapaus com tomate, enlatados como se fossem sardinha em óleo.
- Ah! Então vai vender bem.
- Sobretudo as latas com gindungo. Encomendas não me faltam.
- Pai, aqui é a escola? – perguntou uma criança que vinha mais atrás. Os crescidos olharam para ela e riram. Kwadi olhou também.
- É a primeira vez que a trago à cidade – esclareceu o pai. Vem estudar. Vai ficar aos cuidados da directora do colégio. Lá na fazenda não tenho como.

Kwadi ficou atónito. Os crescidos também. Só Teresa, a menina, parecia alheia ao facto. Tinha a pele escura como Kwadi. Mas o pai não. E era tão velho, pensou Kwadi. Mais que avô. Este era um lugar estranho, tão diferente da tribo de Kwadi. Entretanto, o pai informou.

- Adoptei-a, em 61. Fizeram-me uma razia na fazenda. Na minha família e nos outros todos que lá estavam. Até os cães, cabras, galinhas (e inspirou como se lhe faltasse o ar há horas). Safei-me porque tinha ido abastecer no armazém da Cáala e só voltei no dia seguinte. A única coisa viva que me esperava era a miúda que a mãe escondeu antes de lhe limparem o sebo. Tinha um mês ou dois. Mataram-lhe também o pai e os irmãos. A mim não me deixaram nem a mulher, nem filhos, noras ou genros, nem netos e nem o bisneto que era da idade desta. Desde então é a minha única família. É minha herdeira e tem de ter estudos. Já fez seis anos. Ainda a hei-de ver doutora, casada com um branco da Metrópole, funcionário do Estado e de boas famílias. Brancos de segunda como eu ou os senhores, nunca vão mandar nada nesta terra. Tem de casar com um branco da Metrópole (e riu). Mas ela é que tem de saber governar a fazenda, mandar no dinheiro.
- É uma grande empreitada. - Disse o que falava antes com o caixeiro.
- Olhe, sucesso! Chegou o meu carro. Senhores, tenham um bom dia. – Disse o caixeiro afastando-se em outra direcção. E foi num daqueles bichos que zurravam em deslizar constante.

Carro! O bicho que desliza é carro, anotava Kwadi de si para si.
- Teresa, é por aqui. – Disse o pai para Teresa que se aproximava curiosa de Kwadi. Os olhares cruzaram-se. Kwadi reconheceu-lhe o seu próprio olhar. O da curiosidade, receio do desconhecido, e o brilho da novidade, da descoberta. Tal como ela, um dia retornaria à sua tribo e poderia contar coisas novas. Mas a que tribo, Teresa poderia voltar? – perguntou-se Kwadi, enquanto a via afastar.

Teresa seguiu, junto do pai, saltitando em pulinhos...


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Glossário:

. Branco de segunda – referente aos brancos nascidos nas colónias portuguesas, à época em que ainda eram colónias, e a quem foi legalmente vedado o acesso a determinados cargos públicos ou administrativos, tal como a negros e mestiços. Expressão também usada para referir os brancos não nascidos nas colónias, mas com bastantes anos de África.
. Comboio – trem.
. Gindungo (ou jindungo) – pimenta, piri-piri.
. Metrópole – referente ao Portugal europeu, por oposição aos territórios não europeus (colónias) sob a administração portuguesa que perdurou até 1975, no caso de Angola.
. Soba – o indivíduo que rege a tribo, geralmente de idade avançada à qual se associa sabedoria.

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Notas:

1. Kwadi é uma língua, já extinta, do sul de Namibe (Moçamedes), sul de Angola. Em 1971 foram registados apenas três falantes regulares. Ver Gordon, Raymond G., Jr. (ed.), 2005. Ethnologue: Languages of the World, Fifteenth edition. Dallas, Tex.: SIL International. Versão online: http://www.ethnologue.com/. Mais sobre Angola: http://pt.wikipedia.org/wiki/Angola.

2. Em 1961 Angola assistiu ao início da guerra que duraria até finais da década de 1990. Ver Cabrita, F., 1998. “O 1º. dia do fim do império”. In Revista Expresso. Jornal Expresso, edição 1324, de 14 de Março de 1998. Versão online [requer registo (grátis) e pagamento para ter acesso ao artigo]: http://primeirasedicoes.expresso.clix.pt/ed1324/r301.asp

3. O CFB - Caminho de Ferro de Benguela, atravessa Angola. Vai da cidade costeira atlântica do Lobito, na Província de Benguela até Dilolo na fronteira com a Zâmbia, a 1350Kms de distância. Nos últimos 30 anos só tem funcionado em dois trechos: nos 30Kms entre Lobito e Benguela; e nos cerca de 80Kms à volta do Huambo (Nova Lisboa), entre a Cáala e a estação de Katchiungo, próxima (8Kms) do Chinguar. Actualmente, a linha férrea e demais infraestruturas estão em fase de recuperação. O “Terminal CFB” alude à estação principal na cidade do Lobito.

2 comentários:

Duca disse...

Excelente post! Recordei tanta coisa...
Esta lobitanga espera mais histórias.

Beijo

Unknown disse...

Vai haver mais? Quando?