terça-feira, 10 de abril de 2007

9. A verdade

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Dezoito minutos depois das cinco da tarde, hora em que terminavam as aulas, na sala da directora, a professora visivelmente nervosa dizia:
- Com o devido respeito Senhora Directora, mas a negrinha que tem ao seu cuidado está a precisar de um bom correctivo. Por favor não me entenda mal. De forma alguma estou a pôr em causa a educação que lhe dá, mas a essa gente não há o que se lhes faça. Teve o desplante de me interromper a reprimenda aos mentirosos e de forma sarcástica ainda me perguntar como eu ia falar com a mãe dela morta. Concerteza que lhe dei logo cinco reguadas, e outras duas à Lara que resolveu apelar pela amiga, mas isto não pode ficar por aqui. Sabem tão bem que fizeram mal que nem choraram. E o Henrique coitado, está a ser influenciado. Chorou que nem uma menina e eu nem lhe sacudi o pó. Também não fica bem um rapaz da idade dele em prantos. Está quase com 8 anos!

E continuou a sua versão da história, baseada no que a filha lhe contara ainda no intervalo, porque “as crianças não mentem”, dizia referindo-se exclusivamente à sua filha, de cuja educação tinha certezas infindas. A directora tentou acalmá-la com a garantia que a Teresa seria castigada severamente e a mãe da Lara seria devidamente informada para tomar as providências necessárias. Apesar de serem brancos de segunda, eram pessoas de respeito, com boas ligações na Metrópole, acrescentou a directora. Além do mais, a mãe de Lara nem era branca de segunda, por isso estava ciente que saberia pôr a filha na ordem e que outra situação como a presente, não voltaria a acontecer.

O castigo de Teresa começou pouco depois ainda no colégio, na sala da directora. O dobro dos trabalhos de casa dos outros meninos, uma reprimenda de quase meia hora com os avisos das sanções vindouras: nada de brincadeira, nada de saída aos domingos com os outros, durante um mês, nada de doces ou sobremesas e outras coisas mais das quais Teresa não entendeu nem metade. Iria aprender a cozinhar, costurar, bordar, limpar, lavar, passar, enfim ser dona de casa. Não sabia o que de tão grave pudesse ter feito, mas decerto tinha sido algo muito mau para estar toda a gente tão enervada. À noite chorou sem ninguém ver porque tinha sido uma menina má, apesar de não saber o que de mal tinha feito, mas a mãe lá no céu poderia também estar zangada com ela.

Na manhã do dia seguinte a mãe da Lara estava no colégio, com um ar muito sério. Primeiro esteve com a directora na sala desta, depois a professora também para lá foi antes do intervalo. Depois saíram as três, a mãe de Lara ainda com um ar sério, a directora e a professora com ar de quem tem dor de barriga. A professora parecia ter chorado, tinha os olhos vermelhos. A Áurea estava à espreita à saída da sala da directora. Ouviu a mãe de Lara dizer às outras duas:
- Seria bom que de agora avante tivessem mais cuidado em julgar as crianças, porque isto não se pode repetir. Mesmo que de uma mentira se tratasse, não é desta forma que se educam crianças. Procedimentos destes só as podem traumatizar e criar-lhes aversão à escola. E afinal, se a Lara agarrou o leme durante uns segundos, e o navio não estava parado, esteve a “guiar” o navio, como ela diz (e sorriu).

As outras concordaram, derreteram-se em desculpas até porque a mãe da Lara era amiga da família do comandante e de gente bem mais importante nas Colónias e na Metrópole. E era branca de primeira. Casada com um de segunda, mas rico e influente, por isso, ainda assim era branca de primeira. E Áurea foi a correr para o recreio informar Deus e o mundo que tinha ouvido a mãe da Lara dizer que ela tinha mesmo guiado o navio. O silêncio e o pasmo instalaram-se, os olhares viraram-se para Lara, Teresa e Henrique que estavam juntos. Áurea pululava de grupo em grupo para repetir a verdade da história do navio. Alguns grupos voltavam a chamá-la como a necessitarem de confirmação e confirmação da confirmação do que ouviam.

Depois na sala de aula, a professora esclareceu que Lara não tinha mentido, mas isso não desculpava Teresa da sua má-criação e as crianças não podiam interromper os adultos quando estão a falar. Voltou-se para o quadro, escreveu umas contas difíceis e atacou com reguadas todos os que não as acertaram e que foram exactamente todos, excepto Lara que ganhara o estatuto de “intocável”. Além disso era boa em contas e acertara quase todas nesse dia. À saída, Teresa disse a Lara:

- Agora já sei que a minha mãe também não está zangada comigo. Fez como a tua, mas não pode vir.

Olhou o céu e foi a rir para o carro da directora onde já estavam Henrique, Helena e Renato.
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