terça-feira, 10 de abril de 2007

8. A mentira

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Mais tarde em casa, Lara contava à mãe o que ela e Teresa seriam quando crescessem, a história do navio que tinha o nome do colega Henrique e o tanto que a Mena falara da irmã estudiosa premiada e viajada no navio.
- Lembras-te quando fomos para Lisboa no ano passado? – Perguntou a mãe. – Fomos nesse mesmo navio.
Lara não se lembrava em particular do barco. Já tinha estado em tantos que nem lhe sabia os nomes. Uns maiores, nas viagens a Lisboa e Lourenço Marques, outros menores para Moçamedes ou Luanda e outro menor ainda, do pai, para passeios curtos pela costa, aos domingos: Damba Maria, Benguela, Caota, Baía Azul, Baía Farta, ou para norte, Egipto Praia, Novo Redondo.

Havia também um barquito pequeno, do irmão mais velho, mas nesse não a deixavam nem chegar perto, a menos que estivesse em terra. Ao entardecer o irmão empurrava-o para a água e saia a remar até meio da baía, onde à distância fumava, às escondidas pensava ele, um ou outro cigarro. Uma vez quase tinha engolido o cigarro porque na distracção nem vira um navio aproximar-se, foi o que Lara lhe ouviu contar a um amigo. O irmão implorou-lhe o silêncio, que os pais jamais imaginassem, e Lara anuiu.

Das idas a Lisboa, mais do que navios, lembrava-se do cão Franjinhas que passava a preto e branco na televisão da Metrópole, quer se estivesse em Lisboa ou Porto, lugares onde mais ia. Nas lojas de brinquedos havia-os lá, em todas as cores. Lara tinha um cor-de-rosa. Desde o segredo do irmão que ele tinha parado de a provocar por os cães não serem cor-de-rosa. Chegou mesmo a dizer que “até era engraçado um cão rosa”.

- O Dani também ganhou uma bolsa de estudos e foi para Lisboa há três meses, pelos vistos na mesma viagem da irmã dessa tua colega. – Acrescentou a mãe.
E foi buscar um álbum de fotografias.
Uma foto de Lara a segurar o leme de um navio, o leme maior que ela. Depois outra de Lara com o comandante do navio, de farda branca e um chapéu branco na mão, outra no convés com a mãe e outras mais.
- Já lembro. Aqui foi quando eu guiei o barco. – Disse Lara apontando a foto do leme.
- Sim, foi no Infante D. Henrique. – Esclareceu a mãe.

No dia seguinte Lara contava tudo isto a Teresa e Henrique que sem se aperceberem tinham a Áurea à escuta. Áurea da segunda classe tinha o fascínio das notícias, da novidade e da sua propagação, sendo que mais fascinada ficava se ela mesma pudesse ser a transmissora que deixaria os demais boquiabertos. Antes do intervalo da tarde, já praticamente toda a escola sabia que Dani, o primo de Lara também tinha ganho o prémio de estudioso, como Joana, a irmã de Mena. Mas ainda mais bombástico era o facto de Lara, sim a Lara da primeira classe, já ter guiado um navio, e logo o Infante D. Henrique. O colégio inteiro dividiu-se entre os crentes, os descrentes e os indiferentes.

Os indiferentes, uma dúzia na quarta classe já haviam comentado que “as crianças da primeira” ainda acreditam no pai Natal e algumas ainda fazem xixi na cama. Os crentes, Teresa, Henrique, quase todos da primeira classe, alguns da segunda que odiavam Mena e um ou outro da terceira, não tinham a menor dúvida que Lara tinha guiado o navio. Os demais, a maioria, tinham a certeza que Lara era mentirosa. Uns quantos foram dizer-lhe isso de caras. A filha da professora, amiga da Mena, foi até pular ao redor de Lara ao som da ladainha “és mentirosa, és muito mentirosa, a Teresa também é mentirosa e o Henrique é burro”, que repetia sem parar.

Entretanto uma menina das indiferentes da quarta, disse à filha da professora:
- Pára de gritares como uma cabrita que eu quero perguntar-lhe uma coisa.
E dirigiu-se a Lara.
- Quanto tempo guiaste o navio?
- Foi um pouquinho só, disse Lara. O guiador – referia-se ao leme – é muito grande.
- Tens a certeza que foi o Infante D. Henrique que guiaste?
- A minha mãe é que disse, ontem quando foi buscar a fotografia. Foi no ano passado.
- A tua mãe disse?
- Sim!

O recreio dividiu-se em grupinhos, “ a mãe dela é que lhe disse”, comentava-se. O intervalo acabou numa maka sem fim, com os ódios de outras causas a serem expurgados à conta de Lara e dos crentes que Lara guiara um navio. Já na sala de aula, a professora mãe da “Cabrita” – a partir desse dia, esse seria o nome – dirigiu-se à turma em geral e a Lara em particular, num exercício de estranha pedagogia para ameaçar os castigos terrenos, divinos e demoníacos a que todos os mentirosos seriam sujeitos. E como ameaça suprema, iria convocar a mãe de Lara para a informar dos “desvios” da filha. Iria também alertar as mães de outras crianças que estavam a ser influenciadas pelo mau comportamento de Lara.

Ao dizê-lo cruzou ocasionalmente o olhar com Teresa que a escutava com atenção. Teresa convenceu-se que o olhar lhe era intencionalmente dirigido e que era afirmativo. Sabia que tinha a mãe, pai, irmãos e demais família no céu e para lá não havia correios nem telefones, nem forma de ir e voltar. Apenas ir, um dia quando Deus quisesse e precisasse dos nós. Era assim que lhe havia dito o pai que conhecia, o branco e velho Gonçalves. O pai negro estava no céu. A mãe também e não tinha nenhuma mãe branca ou negra ou de que cor fosse que estivesse na terra. Só tinha uma mãe e no céu. Ficou feliz de saber que a professora ia falar com ela. Também queria falar com ela, mas como isso seria possível? Foi uma complicação na sua cabeça e sem mais pensar perguntou à professora:

- Senhora Professora, como vai falar com a minha mãe?

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Glossário:

. Maka – confusão, discussão, desentendimento.
. Pai Natal – Papai Noel.

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Notas:

1. Nomes de cidades – Em Angola: Novo Redondo, actual Sumbe; Moçamedes, actual Mamibe. Em Moçambique: Lourenço Marques, actual Maputo, capital.

2. Ensino primário em classes de primeira a quarta, em geral dos 6 aos 9 anos de idade.
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