quinta-feira, 19 de abril de 2007

10. O terrorista

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Duas semanas mais tarde num domingo, apesar dos apelos do avô Antunes à esposa directora, Teresa continuava no castigo, em lições para ser “dona de casa”. Estava no anexo com a cozinheira Domingas que ajudava a lavadeira Eulália a passar alguma da roupa da semana. Teresa limitava-se a estar por perto e a vê-las trabalhar. Domingas e Eulália falavam sem parar enquanto fumavam uns cigarrinhos pretos que pareciam engolir nos momentos em que as mãos ficavam ocupadas com a roupa. Teresa tentava compreender os movimentos dos cigarros e a habilidade das duas a virarem-nos para dentro da boca, sem auxílio das mãos, deixando a parte acesa invisível. Mas continuavam acesos e pelos narizes ia saindo a fumaça. De tempos a tempos, movimentavam os lábios e os cigarros voltavam à posição usual com a ponta acesa para fora da boca.

Teresa quis saber mais sobre tais habilidades e comentou sobre uns engolidores de fogo que em tempos tinham passado pela fazenda. Eulália com ar espantado, disse:
- Engolia fogo? Aka! Você tens certeza menina?
Teresa confirmou e descreveu as tochas incendiadas, o sopro dos engolidores de fogo e o ritmo de uns tambores pequenos que outros do bando tocavam.
- Aka! – Repetiu Domingas também, enquanto tirava o cigarro da boca aparentemente sugestionada com a história dos engolidores de fogo.
- Aiiii! Acudam, acudam! – Gritou do fundo da casa a menina Judite pondo fim à conversa de Teresa, Domingas e Eulália que irromperam à porta do anexo. – Um homem no meu quarto! – Continuou a voz aterrorizada.

Em segundos, enquanto se dirigiam à voz viram Jorginho com ar atrapalhado. Parecia estar a sair de casa, mas retornou enfileirando-se atrás das mulheres e de Teresa.
- Gritaram?! – Perguntou como se não soubesse outra coisa.
- Você não tens juízo! – Disse-lhe Eulália.
- Vai lá no teu cubico e fica quieto. Se tua madrinha fica a saber vais apanhar nessa chipala. – Disse Domingas, referindo-se à directora, madrasta de Jorginho.
- Chééé, fiz o quê? – Retorquiu Jorginho provocador, mas obedecendo Domingas.

A directora tinha saído para tomar chá com umas senhoras amigas do Centro de Caridade. Esses chás costumavam ser a meio da semana uma vez por mês, mas a reunião era de emergência. Tinha chovido muito nos últimos dias e a enxurrada deixara nos morros, muitos sem nada ou com pouca coisa. Uma dúzia tinham finado. Havia de deitar mãos à obra e tricotar casaquinhos para as crianças desvalidas. Outras entidades preocupar-se-iam com outras necessidades dos sacrificados pelas forças da natureza e incúria dos humanos. A maior preocupação na cidade era que não grassasse a cólera, que já tinha dado sinais de espreita em cinco casos detectados a tempo.

O avô Antunes e as demais crianças também não estavam. Tinham ido ver uma partida de hóquei em patins no ringue na CPPL. Jogava a CPPL com uma equipa da Huíla, que iria obviamente perder, segundo os dizeres do avô, porque uma coisa era andar de patins e outra era patinar em tamancos. As crianças não tinham entendido a relação entre tamancos e patins na disputa desse dia, mas o avô estava certo quanto à vitória da CPPL. Teresa queria ter ido porque lhe tinham dito que a CPPL era ao lado de uma das entradas laterais do porto, junto à Colina da Saudade e esperava ver os navios. Não conseguindo vencer a directora na execução do castigo, o avô prometera a Teresa que um dia a levaria ao porto, ao jogo, aos navios e que isso seria antes dela voltar à fazenda nas férias de Natal.

Já dentro de casa Teresa, Eulália e Domingas encontraram a menina Judite apavorada porque vira um homem quase a entrar pelo seu quarto, mas no susto o ladrão ou terrorista tinha-se escapulido sem que ela lhe visse a cara. E se fosse um terrorista? Falava-se tanto da guerra que alastrava pelo interior do país, no mato, e mais se falava que chegaria às cidades. Só poderia ser um terrorista. Em África não se sabia de ladrões. Uma ou outra ocorrência sem significado chegava por vezes às esquadras de polícia. Domingas perguntou se tinha visto a catana. Sabia a resposta. Dissera que se não vira catana não podia ser terrorista. Era um terrorista, afirmava a menina Judite com os cabelos soltos e nada aprumada como era seu costume. Domingas e Eulália tentavam tranquilizá-la, mas o pânico já avassalara.

- Não tem terrorista! – Disse Domingas despreocupando Teresa enquanto voltavam ao anexo.
Eulália ficou na casa a fazer companhia a menina Judite que não queria ficar sozinha e que segundo a própria, ia fazer as malas e voltar à sua terra na Metrópole, no primeiro navio que saísse do porto.
- Kwata Nero, kwata kssss kssss kwata! – Jorginho atiçava o cão do lado de dentro do quintal a uns garotos que lançavam papagaios de papel na rua.

- Chééé terrorista Jorginho, menina Judite não viu tua chipala de espreitador. Está arrumar bikuatas para ir embora no navio. - Disse Domingas rindo.

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Glossário:

. Aka – arre, caramba, pôxa.
. Bikuatas, bicuatas – objectos pessoais, acessórios, pertences, mobiliário.
. Catana – faca grande, ligeiramente curva, de cortar mato ou cana-de-açúcar.
. Chipala – rosto, cara, fuças.
. Cubico – casa, lar, quarto, espaço próprio, cafofo.
. Kwata, kuata – morde. Forma de atiçar os cães.

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Notas:

CPPL – Casa do Pessoal do Porto do Lobito, entidade com actividades culturais e desportivas com destaque para o hóquei em patins.
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2 comentários:

S.L. disse...

Engraçado como os caminhos da vida me trouxeram até aqui. Nasci em Angola, no Lobito, mas devido à guerra a minha mãe teve de fugir comigo quando eu só tiha 2 meses. Ao lê-lo surgem-me imagens de um País que nunca conheci, mas que trago dentro de mim a cada passo que dou.Está-me no sangue dizem-me diariamente, na forma como vivo, na minha essência. Adorei tudo neste espeaço e vou continuar a visitar, a ler e a deliciar-me. Obrigada.

Kwadi D. disse...

Talvez "dentro de si a cada passo que dá"... talvez num ar que se respirou, num gene que se herdou, um momento que alguém amou ou simplesmente um lugar que se sonhou... e nesse sonho, o caminho encontrou.
(e acho que isto rimou - riso - e a rima não é o meu estilo)

Dear s. os meus agradecimentos quem quer que seja, pelo seu gentil comentário.
:)

Kwadi D.