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sábado, 5 de maio de 2007

11. O baronete

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Entre o Huambo e o Chinguar a vida sorria a D. Emília, desde que o enteado Sebastião lhe trouxera o novo marido Zé Vicentino, desaportado no Lobito há pouco mais de dois meses. Ainda não se acostumara ao carregar dos xis e à troca dos bês pelos vês, mas no demais estava satisfeita com o casamento e não se sentia enganada, como chegara a temer. Os casamentos por procuração por vezes têm dessas coisas, sonha-se um mundo e acaba-se noutro, mas não era o seu caso - dizia às comadres em horas de tricot.

Vicentino revelara-se um negociante de primeira e desde que chegara tinha deitado mãos ao armazém que prosperava a olhos vistos. Para organizar a fazenda não demonstrara a menor habilidade, mas com o armazém parecia um mágico. Agora abasteciam 4 fazendas próximas e mais uma série de gentes locais. E Sebastião vivia num vai-e-vem para o Lobito a tratar das encomendas, coisa aliás que lhe dava grande prazer, sobretudo depois que havia descoberto as rebitas da Canata e do Salão Lobito, os cabarés Calema, Comodoro e Dominó e a boite Palmar.

Sentia-se o digno herdeiro do sangue do avô, um tenente do GEAR, depois da Esquadrilha Expedicionária e mais tarde, após a primeira guerra mundial, do Grupo de Esquadrilhas de Aviação do Huambo e cuja descendência se estendia para além de África, do Estoril em Portugal à Sorbonne em Paris. O avô nascera por acaso em Angola, filho de um alto funcionário do reino, fizera estudos em Portugal e ai ingressara na vida militar. Voltara a Angola já tenente, com a esposa que esperava um filho, o pai do Sebastião.

A esposa falecera a seguir ao parto. A vida no Huambo dos anos 1920 era penosa e não se compadecia com as fragilidades das gentes menos humildes. O calor era insuportável e de noite o frio fazia-se sentir. E quando chovia era sem parar, dias infindos até os caminhos todos se enlamearem. A tristeza da distância à civilização havia de a matar, dizia a princípio, mas depois parecia até conformada. De qualquer modo, acreditavam que o regresso estivesse para breve, tais eram as notícias que chegavam sobre a extinção da aviação naquele ermo.

Após a sua morte, o tenente ficou triste alguns meses, parecia até que seguiria ao encontro da esposa, mas depois as coisas mudaram. Ficou mais sôfrego com os prazeres da vida e arranjou uma mulher. Depois outra, e outra. Depois perderam a conta a quantas seriam. Acabou-se a aviação no Huambo e ele deixou-se ficar. Os da sua família, queriam que regressasse à Metrópole para seguir a carreira, mas ele não quis. Voltou a Portugal apenas para tratar de transferir os seus bens e não ter de fazer nada na vida a não ser “vivê-la”, segundo dizia. E vivia. Continuava a viver e a fazer crescer a família e os haveres, porque tinha bom tino para os investimentos.

Cuidava dos filhos à distância. Eram muitos e nem lhes sabia o nome, mas tinha contratado um contabilista cuja incumbência era garantir que a rapaziada não carecesse de nada, nem de estudos e que as filhas fossem educadas finamente, pudessem almejar um bom casamento e tivessem dote a condizer com a sua condição de filhas de um baronete, que Portugal era agora uma república, mas a monarquia não estava acabada, dizia em conversas nos círculos de amizade mais íntimos.

Sebastião, após a morte do pai, passara a ser o seu primeiro herdeiro na linha de sucessão, mas mais do que o título almejava-lhe a condição de mulherengo bem quisto por todos e sobretudo, por todas. Como futuro baronete, o avô dedicava-lhe atenção especial e sabia-lhe o nome, as virtudes, os defeitos e as habilidades de conquista dos corações femininos. Com a sua influência tinha-o livrado do serviço militar e preparava-o como se deve preparar um baronete em África, ou seja, numa condição tão especial que nem o próprio saberia esmiuçar.

-Temos de ir ao Lobito esta sexta... estreia novo ballet no Dominó. – Disse a Sebastião.
E foram.

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Glossário:

. Rebita – estilo de música angolana que incita a dança.

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Notas:

1. GEAR – Grupo de Esquadrilhas de Aviação República, Amadora, Portugal, fim da década de 1910 à de 1930, primeira unidade operacional da aviação em Portugal.

2. A Esquadrilha Expedicionária foi formada para defesa de Angola no decurso da I Grande Guerra e extinta em 1921 por Norton de Matos, dando lugar ao Grupo de Esquadrilhas de Aviação do Huambo, por sua vez extinto em 1924 devido a dificuldades financeiras da, então jovem e atribulada, República Portuguesa.

3. Sorbonne – universidade parisiense, centro da actividade estudantil que culminou com o Maio de 1968.
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quinta-feira, 22 de março de 2007

2. A despedida

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A sala era grande do ponto de vista de Teresa. Ainda assim pareceu-lhe boa ideia não se adiantar demais no espaço, não pular, saltar, cantarolar, mexer no que fosse, muito menos enfiar o dedo no nariz, ou sequer fazer alguma pergunta. Não sentia medo nenhum, mas a ocasião parecia-lhe solene. Lembrava o dia que foi para a Missão do Canhe no Huambo, desfilar na entrega das alianças no casamento da Dona Emília. Havia lá um noivo, mas não era o noivo. Tinham-lhe dito que deveria dar as alianças aos noivos. Depois disseram que o noivo não era o que estava lá e Teresa não lhe quis dar a aliança. Foi uma maka na igreja. Depois todos riram. Por fim o padre abençoou Teresa e disse que Deus olharia por ela. Abençoou também a Dona Emília e o noivo que não era noivo. Era primo. Mais tarde tentaram explicar-lhe que a Dona Emília estava a casar por procuração. O noivo de verdade estava na Metrópole e só ia chegar daí a dois meses. E como ia morar logo com a Dona Emília, o casamento foi feito antes e por procuração.

De toda a história, Teresa entendeu que em caso de dúvida sobre as coisas, o melhor a fazer é ficar o mais quieta e calada possível. Além disso memorizou: “por procuração o noivo vem depois”. Tempos mais tarde, lembrando-se disso e já que o pai vivia a falar que ela havia de casar com um branco da Metrópole, resolveu aliviar a ansiedade paterna.
- Pai, queres que eu case amanhã por procuração?
- Amanhã? Por procuração? Que perguntas são essas Teresinha?
- Caso amanhã por procuração e depois assim, já me caso com o branco da Metrópole, quando ele vier.
- Qual branco? – Perguntou o pai.
Teresa ficou com os olhinhos pequenos, pequeninos, a olhar o pai. Estava a pensar, mas a pergunta era complicada. Ah! Era preciso saber qual branco? E como ela poderia saber, se o que o pai queria era um branco da Metrópole e a avaliar pelo caso da D. Emília ela primeiro casou e depois é que o noivo chegaria. Ora, esses brancos estavam na Metrópole e Teresa nem sabia muito bem onde isso seria, mas concerteza era longe. Entretanto o gato Bolinha passou, Teresa foi atrás dele e a conversa do casamento terminou para descanso de todos menos do gato que não gostava de ser agarrado.

Agora, na sala da Directora – “Senhora Directora”, avisara-lhe o pai – Teresa esperava olhando em redor, muito devagarinho. Uma secretária enorme de madeira escura e brilhante atravancava o acesso à janela por onde Teresa queria espreitar, para saber o que estava lá fora. Em cima havia uma bola com muitas cores, mas o mais em azul, que o pai lhe disse ser o mundo. Além do mundo, a secretária tinha muitos papéis todos direitinhos, 3 lápis, uma borracha, um molhinho de envelopes, 4 livros grandes e mais outro pequenino e gordinho e uma caneta espetada num frasquinho de vidro com tinta azul escura. As paredes quase não se viam. Estavam forradas com estantes cheias de livros, alguns muito amarelados. Teresa nunca tinha visto tantos livros. Ela tinha dois da Anita. Gostava muito da Anita dos livros. Os livros da Anita tinham desenhos com a Anita, a amiga Bruna, o cachorrinho e outras coisas, além de letras, que para Teresa eram coisas que preenchiam os espaços dos livros onde não cabiam mais desenhos. O pai também tinha livros, quase todos amarelos com letras pequeninas e sem desenhos e mais outros que ele chamava “livros de contas” onde escrevia coisas de dinheiro que a Teresa um dia, quando fosse grande, tinha de saber para mandar na fazenda – era o que o pai lhe dizia.

Entre a secretária e a janela estava uma cadeira enorme, vazia e do outro lado, outra cadeira também grande onde o pai estava sentado a olhar indefinidamente para a bola do mundo, que de vez em quando fazia rodar devagar. A porta abriu-se e chegou uma senhora magrinha e alta com o cabelo muito redondo e levantado por igual, o que lhe fazia a cabeça muito grande. Era a senhora Directora. Muitas senhoras usavam aquele penteado e Teresa sabia que aquele cabelo alto precisava laca para não cair. Laca parecia-lhe uma coisa fina, mas a Dona Emília no rescaldo da maka no casamento por procuração havia-lhe dito que a laca não era para a Teresa, nem quando ela fosse grande. Alguma coisa em sequela do cabelo de Teresa ser demasiado encaracoladinho, “coisa da raça” – ela disse.

- Esta é a Teresa? – Perguntou a Directora ao pai, depois de o cumprimentar e saber como tinha sido a viagem.
- Sim, é a minha Teresinha. É muito viva, esperta que só ela.
E virando-se para Teresa:
- Dá as boas tardes à senhora Directora.
- Boa tarde senhora Directora. – Disse Teresa com ar solene.
Os crescidos riram. Teresa ficou a olhar sem entender a piada. A Directora falou-lhe:
- Vais ter de estudar muito e ser bem comportada para não decepcionares o teu pai e mereceres a sorte que tens. De certeza vais gostar de estar na escola. Há muitos meninos e meninas, nos intervalos podem brincar, mas nas aulas têm de estar atentos, senão não aprendem. Os burros e os maus são castigados. Os estudiosos vão chegar longe na vida e aqui tratamos que os nossos alunos sejam estudiosos e venham a ser homens e mulheres de futuro. Daqui a pouco o teu pai vai embora e tu não vais chorar. Já és uma menina grande, não um bebé. Nas férias voltas à fazenda.

Isso já o pai lhe tinha dito – que nas férias voltaria à fazenda, que Teresa ficaria na casa da Directora, onde havia mais 3 ou 4 crianças de outras fazendas. O que eram férias é que Teresa não tinha ainda compreendido muito bem, mas pelo ar dos adultos que falavam disso, devia ser uma coisa boa. De qualquer dos modos, como as tais férias seriam na fazenda, deveriam mesmo ser uma coisa boa. O que a intrigava, era o que seriam “os estudiosos”, que pelos vistos ela tinha de ser. A conversa do pai com a Directora prolongou-se sem que Teresa entendesse pormenores, mas como tinha trazido as duas bonecas na mala, estava tranquila. Finalmente o pai chamou-a, sentou-a no colo, abraçou-a e ficou triste.
- Tem sido a minha alegria, minha razão de viver. – Disse, olhando para a Directora, como a desculpar-se.
- Pai, podes levar a minha boneca Joaninha contigo.
- Não queres a boneca, Teresinha?
- É para não voltares sozinho.
- Ah! Não é preciso. Agora na ida, vão outros senhores meus conhecidos que já cá estavam e por isso não vieram no nosso comboio. Fica tu com a boneca.

Saíram os três da sala e já na porta de saída, com o táxi à espera, sem Teresa ouvir porque se afastara a remexer num bolso do casaco, o pai disse à Directora, num tom de voz baixo:
- Preocupa-me como a minha menina vai reagir a esta distância e a tanta coisa nova na vida dela. Por favor, não deixe de me informar de qualquer coisa que aconteça ou que ela precise.
- Esteja descansado senhor Gonçalves, ela fica bem. As crianças nestas coisas são mais fortes que os adultos. E já lá diz o ditado, “muito mimo, estraga o menino”.

Mais um abraço a Teresa, cumprimentos à Directora e ao entrar no táxi é surpreendido por Teresa, que o ultrapassou e está à sua frente, quase enfiada pela porta dentro.
- Podes dar este rebuçado ao menino da estação?
- Que menino?
- O grande, sentado na pedra, que tinha farinha branca na cara.
Teresa referia-se a Kwadi, mas não lhe sabia o nome.
- Se o vir, compro-lhe outro rebuçado, está bem?
- Tá.

E o táxi seguiu pela avenida até ser apenas um pontinho...

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Glossário:

. Maka – confusão, discussão, desentendimento.
. Rebuçado – balinha.
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