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Entre o Huambo e o Chinguar a vida sorria a D. Emília, desde que o enteado Sebastião lhe trouxera o novo marido Zé Vicentino, desaportado no Lobito há pouco mais de dois meses. Ainda não se acostumara ao carregar dos xis e à troca dos bês pelos vês, mas no demais estava satisfeita com o casamento e não se sentia enganada, como chegara a temer. Os casamentos por procuração por vezes têm dessas coisas, sonha-se um mundo e acaba-se noutro, mas não era o seu caso - dizia às comadres em horas de tricot.
Vicentino revelara-se um negociante de primeira e desde que chegara tinha deitado mãos ao armazém que prosperava a olhos vistos. Para organizar a fazenda não demonstrara a menor habilidade, mas com o armazém parecia um mágico. Agora abasteciam 4 fazendas próximas e mais uma série de gentes locais. E Sebastião vivia num vai-e-vem para o Lobito a tratar das encomendas, coisa aliás que lhe dava grande prazer, sobretudo depois que havia descoberto as rebitas da Canata e do Salão Lobito, os cabarés Calema, Comodoro e Dominó e a boite Palmar.
Sentia-se o digno herdeiro do sangue do avô, um tenente do GEAR, depois da Esquadrilha Expedicionária e mais tarde, após a primeira guerra mundial, do Grupo de Esquadrilhas de Aviação do Huambo e cuja descendência se estendia para além de África, do Estoril em Portugal à Sorbonne em Paris. O avô nascera por acaso em Angola, filho de um alto funcionário do reino, fizera estudos em Portugal e ai ingressara na vida militar. Voltara a Angola já tenente, com a esposa que esperava um filho, o pai do Sebastião.
A esposa falecera a seguir ao parto. A vida no Huambo dos anos 1920 era penosa e não se compadecia com as fragilidades das gentes menos humildes. O calor era insuportável e de noite o frio fazia-se sentir. E quando chovia era sem parar, dias infindos até os caminhos todos se enlamearem. A tristeza da distância à civilização havia de a matar, dizia a princípio, mas depois parecia até conformada. De qualquer modo, acreditavam que o regresso estivesse para breve, tais eram as notícias que chegavam sobre a extinção da aviação naquele ermo.
Após a sua morte, o tenente ficou triste alguns meses, parecia até que seguiria ao encontro da esposa, mas depois as coisas mudaram. Ficou mais sôfrego com os prazeres da vida e arranjou uma mulher. Depois outra, e outra. Depois perderam a conta a quantas seriam. Acabou-se a aviação no Huambo e ele deixou-se ficar. Os da sua família, queriam que regressasse à Metrópole para seguir a carreira, mas ele não quis. Voltou a Portugal apenas para tratar de transferir os seus bens e não ter de fazer nada na vida a não ser “vivê-la”, segundo dizia. E vivia. Continuava a viver e a fazer crescer a família e os haveres, porque tinha bom tino para os investimentos.
Cuidava dos filhos à distância. Eram muitos e nem lhes sabia o nome, mas tinha contratado um contabilista cuja incumbência era garantir que a rapaziada não carecesse de nada, nem de estudos e que as filhas fossem educadas finamente, pudessem almejar um bom casamento e tivessem dote a condizer com a sua condição de filhas de um baronete, que Portugal era agora uma república, mas a monarquia não estava acabada, dizia em conversas nos círculos de amizade mais íntimos.
Sebastião, após a morte do pai, passara a ser o seu primeiro herdeiro na linha de sucessão, mas mais do que o título almejava-lhe a condição de mulherengo bem quisto por todos e sobretudo, por todas. Como futuro baronete, o avô dedicava-lhe atenção especial e sabia-lhe o nome, as virtudes, os defeitos e as habilidades de conquista dos corações femininos. Com a sua influência tinha-o livrado do serviço militar e preparava-o como se deve preparar um baronete em África, ou seja, numa condição tão especial que nem o próprio saberia esmiuçar.
-Temos de ir ao Lobito esta sexta... estreia novo ballet no Dominó. – Disse a Sebastião.
E foram.
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Glossário:
. Rebita – estilo de música angolana que incita a dança.
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Notas:
1. GEAR – Grupo de Esquadrilhas de Aviação República, Amadora, Portugal, fim da década de 1910 à de 1930, primeira unidade operacional da aviação em Portugal.
2. A Esquadrilha Expedicionária foi formada para defesa de Angola no decurso da I Grande Guerra e extinta em 1921 por Norton de Matos, dando lugar ao Grupo de Esquadrilhas de Aviação do Huambo, por sua vez extinto em 1924 devido a dificuldades financeiras da, então jovem e atribulada, República Portuguesa.
3. Sorbonne – universidade parisiense, centro da actividade estudantil que culminou com o Maio de 1968.
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sábado, 5 de maio de 2007
quinta-feira, 19 de abril de 2007
10. O terrorista
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Duas semanas mais tarde num domingo, apesar dos apelos do avô Antunes à esposa directora, Teresa continuava no castigo, em lições para ser “dona de casa”. Estava no anexo com a cozinheira Domingas que ajudava a lavadeira Eulália a passar alguma da roupa da semana. Teresa limitava-se a estar por perto e a vê-las trabalhar. Domingas e Eulália falavam sem parar enquanto fumavam uns cigarrinhos pretos que pareciam engolir nos momentos em que as mãos ficavam ocupadas com a roupa. Teresa tentava compreender os movimentos dos cigarros e a habilidade das duas a virarem-nos para dentro da boca, sem auxílio das mãos, deixando a parte acesa invisível. Mas continuavam acesos e pelos narizes ia saindo a fumaça. De tempos a tempos, movimentavam os lábios e os cigarros voltavam à posição usual com a ponta acesa para fora da boca.
Teresa quis saber mais sobre tais habilidades e comentou sobre uns engolidores de fogo que em tempos tinham passado pela fazenda. Eulália com ar espantado, disse:
- Engolia fogo? Aka! Você tens certeza menina?
Teresa confirmou e descreveu as tochas incendiadas, o sopro dos engolidores de fogo e o ritmo de uns tambores pequenos que outros do bando tocavam.
- Aka! – Repetiu Domingas também, enquanto tirava o cigarro da boca aparentemente sugestionada com a história dos engolidores de fogo.
- Aiiii! Acudam, acudam! – Gritou do fundo da casa a menina Judite pondo fim à conversa de Teresa, Domingas e Eulália que irromperam à porta do anexo. – Um homem no meu quarto! – Continuou a voz aterrorizada.
Em segundos, enquanto se dirigiam à voz viram Jorginho com ar atrapalhado. Parecia estar a sair de casa, mas retornou enfileirando-se atrás das mulheres e de Teresa.
- Gritaram?! – Perguntou como se não soubesse outra coisa.
- Você não tens juízo! – Disse-lhe Eulália.
- Vai lá no teu cubico e fica quieto. Se tua madrinha fica a saber vais apanhar nessa chipala. – Disse Domingas, referindo-se à directora, madrasta de Jorginho.
- Chééé, fiz o quê? – Retorquiu Jorginho provocador, mas obedecendo Domingas.
A directora tinha saído para tomar chá com umas senhoras amigas do Centro de Caridade. Esses chás costumavam ser a meio da semana uma vez por mês, mas a reunião era de emergência. Tinha chovido muito nos últimos dias e a enxurrada deixara nos morros, muitos sem nada ou com pouca coisa. Uma dúzia tinham finado. Havia de deitar mãos à obra e tricotar casaquinhos para as crianças desvalidas. Outras entidades preocupar-se-iam com outras necessidades dos sacrificados pelas forças da natureza e incúria dos humanos. A maior preocupação na cidade era que não grassasse a cólera, que já tinha dado sinais de espreita em cinco casos detectados a tempo.
O avô Antunes e as demais crianças também não estavam. Tinham ido ver uma partida de hóquei em patins no ringue na CPPL. Jogava a CPPL com uma equipa da Huíla, que iria obviamente perder, segundo os dizeres do avô, porque uma coisa era andar de patins e outra era patinar em tamancos. As crianças não tinham entendido a relação entre tamancos e patins na disputa desse dia, mas o avô estava certo quanto à vitória da CPPL. Teresa queria ter ido porque lhe tinham dito que a CPPL era ao lado de uma das entradas laterais do porto, junto à Colina da Saudade e esperava ver os navios. Não conseguindo vencer a directora na execução do castigo, o avô prometera a Teresa que um dia a levaria ao porto, ao jogo, aos navios e que isso seria antes dela voltar à fazenda nas férias de Natal.
Já dentro de casa Teresa, Eulália e Domingas encontraram a menina Judite apavorada porque vira um homem quase a entrar pelo seu quarto, mas no susto o ladrão ou terrorista tinha-se escapulido sem que ela lhe visse a cara. E se fosse um terrorista? Falava-se tanto da guerra que alastrava pelo interior do país, no mato, e mais se falava que chegaria às cidades. Só poderia ser um terrorista. Em África não se sabia de ladrões. Uma ou outra ocorrência sem significado chegava por vezes às esquadras de polícia. Domingas perguntou se tinha visto a catana. Sabia a resposta. Dissera que se não vira catana não podia ser terrorista. Era um terrorista, afirmava a menina Judite com os cabelos soltos e nada aprumada como era seu costume. Domingas e Eulália tentavam tranquilizá-la, mas o pânico já avassalara.
- Não tem terrorista! – Disse Domingas despreocupando Teresa enquanto voltavam ao anexo.
Eulália ficou na casa a fazer companhia a menina Judite que não queria ficar sozinha e que segundo a própria, ia fazer as malas e voltar à sua terra na Metrópole, no primeiro navio que saísse do porto.
- Kwata Nero, kwata kssss kssss kwata! – Jorginho atiçava o cão do lado de dentro do quintal a uns garotos que lançavam papagaios de papel na rua.
- Chééé terrorista Jorginho, menina Judite não viu tua chipala de espreitador. Está arrumar bikuatas para ir embora no navio. - Disse Domingas rindo.
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Glossário:
. Aka – arre, caramba, pôxa.
. Bikuatas, bicuatas – objectos pessoais, acessórios, pertences, mobiliário.
. Catana – faca grande, ligeiramente curva, de cortar mato ou cana-de-açúcar.
. Chipala – rosto, cara, fuças.
. Cubico – casa, lar, quarto, espaço próprio, cafofo.
. Kwata, kuata – morde. Forma de atiçar os cães.
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Notas:
CPPL – Casa do Pessoal do Porto do Lobito, entidade com actividades culturais e desportivas com destaque para o hóquei em patins.
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Duas semanas mais tarde num domingo, apesar dos apelos do avô Antunes à esposa directora, Teresa continuava no castigo, em lições para ser “dona de casa”. Estava no anexo com a cozinheira Domingas que ajudava a lavadeira Eulália a passar alguma da roupa da semana. Teresa limitava-se a estar por perto e a vê-las trabalhar. Domingas e Eulália falavam sem parar enquanto fumavam uns cigarrinhos pretos que pareciam engolir nos momentos em que as mãos ficavam ocupadas com a roupa. Teresa tentava compreender os movimentos dos cigarros e a habilidade das duas a virarem-nos para dentro da boca, sem auxílio das mãos, deixando a parte acesa invisível. Mas continuavam acesos e pelos narizes ia saindo a fumaça. De tempos a tempos, movimentavam os lábios e os cigarros voltavam à posição usual com a ponta acesa para fora da boca.
Teresa quis saber mais sobre tais habilidades e comentou sobre uns engolidores de fogo que em tempos tinham passado pela fazenda. Eulália com ar espantado, disse:
- Engolia fogo? Aka! Você tens certeza menina?
Teresa confirmou e descreveu as tochas incendiadas, o sopro dos engolidores de fogo e o ritmo de uns tambores pequenos que outros do bando tocavam.
- Aka! – Repetiu Domingas também, enquanto tirava o cigarro da boca aparentemente sugestionada com a história dos engolidores de fogo.
- Aiiii! Acudam, acudam! – Gritou do fundo da casa a menina Judite pondo fim à conversa de Teresa, Domingas e Eulália que irromperam à porta do anexo. – Um homem no meu quarto! – Continuou a voz aterrorizada.
Em segundos, enquanto se dirigiam à voz viram Jorginho com ar atrapalhado. Parecia estar a sair de casa, mas retornou enfileirando-se atrás das mulheres e de Teresa.
- Gritaram?! – Perguntou como se não soubesse outra coisa.
- Você não tens juízo! – Disse-lhe Eulália.
- Vai lá no teu cubico e fica quieto. Se tua madrinha fica a saber vais apanhar nessa chipala. – Disse Domingas, referindo-se à directora, madrasta de Jorginho.
- Chééé, fiz o quê? – Retorquiu Jorginho provocador, mas obedecendo Domingas.
A directora tinha saído para tomar chá com umas senhoras amigas do Centro de Caridade. Esses chás costumavam ser a meio da semana uma vez por mês, mas a reunião era de emergência. Tinha chovido muito nos últimos dias e a enxurrada deixara nos morros, muitos sem nada ou com pouca coisa. Uma dúzia tinham finado. Havia de deitar mãos à obra e tricotar casaquinhos para as crianças desvalidas. Outras entidades preocupar-se-iam com outras necessidades dos sacrificados pelas forças da natureza e incúria dos humanos. A maior preocupação na cidade era que não grassasse a cólera, que já tinha dado sinais de espreita em cinco casos detectados a tempo.
O avô Antunes e as demais crianças também não estavam. Tinham ido ver uma partida de hóquei em patins no ringue na CPPL. Jogava a CPPL com uma equipa da Huíla, que iria obviamente perder, segundo os dizeres do avô, porque uma coisa era andar de patins e outra era patinar em tamancos. As crianças não tinham entendido a relação entre tamancos e patins na disputa desse dia, mas o avô estava certo quanto à vitória da CPPL. Teresa queria ter ido porque lhe tinham dito que a CPPL era ao lado de uma das entradas laterais do porto, junto à Colina da Saudade e esperava ver os navios. Não conseguindo vencer a directora na execução do castigo, o avô prometera a Teresa que um dia a levaria ao porto, ao jogo, aos navios e que isso seria antes dela voltar à fazenda nas férias de Natal.
Já dentro de casa Teresa, Eulália e Domingas encontraram a menina Judite apavorada porque vira um homem quase a entrar pelo seu quarto, mas no susto o ladrão ou terrorista tinha-se escapulido sem que ela lhe visse a cara. E se fosse um terrorista? Falava-se tanto da guerra que alastrava pelo interior do país, no mato, e mais se falava que chegaria às cidades. Só poderia ser um terrorista. Em África não se sabia de ladrões. Uma ou outra ocorrência sem significado chegava por vezes às esquadras de polícia. Domingas perguntou se tinha visto a catana. Sabia a resposta. Dissera que se não vira catana não podia ser terrorista. Era um terrorista, afirmava a menina Judite com os cabelos soltos e nada aprumada como era seu costume. Domingas e Eulália tentavam tranquilizá-la, mas o pânico já avassalara.
- Não tem terrorista! – Disse Domingas despreocupando Teresa enquanto voltavam ao anexo.
Eulália ficou na casa a fazer companhia a menina Judite que não queria ficar sozinha e que segundo a própria, ia fazer as malas e voltar à sua terra na Metrópole, no primeiro navio que saísse do porto.
- Kwata Nero, kwata kssss kssss kwata! – Jorginho atiçava o cão do lado de dentro do quintal a uns garotos que lançavam papagaios de papel na rua.
- Chééé terrorista Jorginho, menina Judite não viu tua chipala de espreitador. Está arrumar bikuatas para ir embora no navio. - Disse Domingas rindo.
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Glossário:
. Aka – arre, caramba, pôxa.
. Bikuatas, bicuatas – objectos pessoais, acessórios, pertences, mobiliário.
. Catana – faca grande, ligeiramente curva, de cortar mato ou cana-de-açúcar.
. Chipala – rosto, cara, fuças.
. Cubico – casa, lar, quarto, espaço próprio, cafofo.
. Kwata, kuata – morde. Forma de atiçar os cães.
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Notas:
CPPL – Casa do Pessoal do Porto do Lobito, entidade com actividades culturais e desportivas com destaque para o hóquei em patins.
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terça-feira, 10 de abril de 2007
9. A verdade
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Dezoito minutos depois das cinco da tarde, hora em que terminavam as aulas, na sala da directora, a professora visivelmente nervosa dizia:
- Com o devido respeito Senhora Directora, mas a negrinha que tem ao seu cuidado está a precisar de um bom correctivo. Por favor não me entenda mal. De forma alguma estou a pôr em causa a educação que lhe dá, mas a essa gente não há o que se lhes faça. Teve o desplante de me interromper a reprimenda aos mentirosos e de forma sarcástica ainda me perguntar como eu ia falar com a mãe dela morta. Concerteza que lhe dei logo cinco reguadas, e outras duas à Lara que resolveu apelar pela amiga, mas isto não pode ficar por aqui. Sabem tão bem que fizeram mal que nem choraram. E o Henrique coitado, está a ser influenciado. Chorou que nem uma menina e eu nem lhe sacudi o pó. Também não fica bem um rapaz da idade dele em prantos. Está quase com 8 anos!
E continuou a sua versão da história, baseada no que a filha lhe contara ainda no intervalo, porque “as crianças não mentem”, dizia referindo-se exclusivamente à sua filha, de cuja educação tinha certezas infindas. A directora tentou acalmá-la com a garantia que a Teresa seria castigada severamente e a mãe da Lara seria devidamente informada para tomar as providências necessárias. Apesar de serem brancos de segunda, eram pessoas de respeito, com boas ligações na Metrópole, acrescentou a directora. Além do mais, a mãe de Lara nem era branca de segunda, por isso estava ciente que saberia pôr a filha na ordem e que outra situação como a presente, não voltaria a acontecer.
O castigo de Teresa começou pouco depois ainda no colégio, na sala da directora. O dobro dos trabalhos de casa dos outros meninos, uma reprimenda de quase meia hora com os avisos das sanções vindouras: nada de brincadeira, nada de saída aos domingos com os outros, durante um mês, nada de doces ou sobremesas e outras coisas mais das quais Teresa não entendeu nem metade. Iria aprender a cozinhar, costurar, bordar, limpar, lavar, passar, enfim ser dona de casa. Não sabia o que de tão grave pudesse ter feito, mas decerto tinha sido algo muito mau para estar toda a gente tão enervada. À noite chorou sem ninguém ver porque tinha sido uma menina má, apesar de não saber o que de mal tinha feito, mas a mãe lá no céu poderia também estar zangada com ela.
Na manhã do dia seguinte a mãe da Lara estava no colégio, com um ar muito sério. Primeiro esteve com a directora na sala desta, depois a professora também para lá foi antes do intervalo. Depois saíram as três, a mãe de Lara ainda com um ar sério, a directora e a professora com ar de quem tem dor de barriga. A professora parecia ter chorado, tinha os olhos vermelhos. A Áurea estava à espreita à saída da sala da directora. Ouviu a mãe de Lara dizer às outras duas:
- Seria bom que de agora avante tivessem mais cuidado em julgar as crianças, porque isto não se pode repetir. Mesmo que de uma mentira se tratasse, não é desta forma que se educam crianças. Procedimentos destes só as podem traumatizar e criar-lhes aversão à escola. E afinal, se a Lara agarrou o leme durante uns segundos, e o navio não estava parado, esteve a “guiar” o navio, como ela diz (e sorriu).
As outras concordaram, derreteram-se em desculpas até porque a mãe da Lara era amiga da família do comandante e de gente bem mais importante nas Colónias e na Metrópole. E era branca de primeira. Casada com um de segunda, mas rico e influente, por isso, ainda assim era branca de primeira. E Áurea foi a correr para o recreio informar Deus e o mundo que tinha ouvido a mãe da Lara dizer que ela tinha mesmo guiado o navio. O silêncio e o pasmo instalaram-se, os olhares viraram-se para Lara, Teresa e Henrique que estavam juntos. Áurea pululava de grupo em grupo para repetir a verdade da história do navio. Alguns grupos voltavam a chamá-la como a necessitarem de confirmação e confirmação da confirmação do que ouviam.
Depois na sala de aula, a professora esclareceu que Lara não tinha mentido, mas isso não desculpava Teresa da sua má-criação e as crianças não podiam interromper os adultos quando estão a falar. Voltou-se para o quadro, escreveu umas contas difíceis e atacou com reguadas todos os que não as acertaram e que foram exactamente todos, excepto Lara que ganhara o estatuto de “intocável”. Além disso era boa em contas e acertara quase todas nesse dia. À saída, Teresa disse a Lara:
- Agora já sei que a minha mãe também não está zangada comigo. Fez como a tua, mas não pode vir.
Olhou o céu e foi a rir para o carro da directora onde já estavam Henrique, Helena e Renato.
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Dezoito minutos depois das cinco da tarde, hora em que terminavam as aulas, na sala da directora, a professora visivelmente nervosa dizia:
- Com o devido respeito Senhora Directora, mas a negrinha que tem ao seu cuidado está a precisar de um bom correctivo. Por favor não me entenda mal. De forma alguma estou a pôr em causa a educação que lhe dá, mas a essa gente não há o que se lhes faça. Teve o desplante de me interromper a reprimenda aos mentirosos e de forma sarcástica ainda me perguntar como eu ia falar com a mãe dela morta. Concerteza que lhe dei logo cinco reguadas, e outras duas à Lara que resolveu apelar pela amiga, mas isto não pode ficar por aqui. Sabem tão bem que fizeram mal que nem choraram. E o Henrique coitado, está a ser influenciado. Chorou que nem uma menina e eu nem lhe sacudi o pó. Também não fica bem um rapaz da idade dele em prantos. Está quase com 8 anos!
E continuou a sua versão da história, baseada no que a filha lhe contara ainda no intervalo, porque “as crianças não mentem”, dizia referindo-se exclusivamente à sua filha, de cuja educação tinha certezas infindas. A directora tentou acalmá-la com a garantia que a Teresa seria castigada severamente e a mãe da Lara seria devidamente informada para tomar as providências necessárias. Apesar de serem brancos de segunda, eram pessoas de respeito, com boas ligações na Metrópole, acrescentou a directora. Além do mais, a mãe de Lara nem era branca de segunda, por isso estava ciente que saberia pôr a filha na ordem e que outra situação como a presente, não voltaria a acontecer.
O castigo de Teresa começou pouco depois ainda no colégio, na sala da directora. O dobro dos trabalhos de casa dos outros meninos, uma reprimenda de quase meia hora com os avisos das sanções vindouras: nada de brincadeira, nada de saída aos domingos com os outros, durante um mês, nada de doces ou sobremesas e outras coisas mais das quais Teresa não entendeu nem metade. Iria aprender a cozinhar, costurar, bordar, limpar, lavar, passar, enfim ser dona de casa. Não sabia o que de tão grave pudesse ter feito, mas decerto tinha sido algo muito mau para estar toda a gente tão enervada. À noite chorou sem ninguém ver porque tinha sido uma menina má, apesar de não saber o que de mal tinha feito, mas a mãe lá no céu poderia também estar zangada com ela.
Na manhã do dia seguinte a mãe da Lara estava no colégio, com um ar muito sério. Primeiro esteve com a directora na sala desta, depois a professora também para lá foi antes do intervalo. Depois saíram as três, a mãe de Lara ainda com um ar sério, a directora e a professora com ar de quem tem dor de barriga. A professora parecia ter chorado, tinha os olhos vermelhos. A Áurea estava à espreita à saída da sala da directora. Ouviu a mãe de Lara dizer às outras duas:
- Seria bom que de agora avante tivessem mais cuidado em julgar as crianças, porque isto não se pode repetir. Mesmo que de uma mentira se tratasse, não é desta forma que se educam crianças. Procedimentos destes só as podem traumatizar e criar-lhes aversão à escola. E afinal, se a Lara agarrou o leme durante uns segundos, e o navio não estava parado, esteve a “guiar” o navio, como ela diz (e sorriu).
As outras concordaram, derreteram-se em desculpas até porque a mãe da Lara era amiga da família do comandante e de gente bem mais importante nas Colónias e na Metrópole. E era branca de primeira. Casada com um de segunda, mas rico e influente, por isso, ainda assim era branca de primeira. E Áurea foi a correr para o recreio informar Deus e o mundo que tinha ouvido a mãe da Lara dizer que ela tinha mesmo guiado o navio. O silêncio e o pasmo instalaram-se, os olhares viraram-se para Lara, Teresa e Henrique que estavam juntos. Áurea pululava de grupo em grupo para repetir a verdade da história do navio. Alguns grupos voltavam a chamá-la como a necessitarem de confirmação e confirmação da confirmação do que ouviam.
Depois na sala de aula, a professora esclareceu que Lara não tinha mentido, mas isso não desculpava Teresa da sua má-criação e as crianças não podiam interromper os adultos quando estão a falar. Voltou-se para o quadro, escreveu umas contas difíceis e atacou com reguadas todos os que não as acertaram e que foram exactamente todos, excepto Lara que ganhara o estatuto de “intocável”. Além disso era boa em contas e acertara quase todas nesse dia. À saída, Teresa disse a Lara:
- Agora já sei que a minha mãe também não está zangada comigo. Fez como a tua, mas não pode vir.
Olhou o céu e foi a rir para o carro da directora onde já estavam Henrique, Helena e Renato.
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8. A mentira
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Mais tarde em casa, Lara contava à mãe o que ela e Teresa seriam quando crescessem, a história do navio que tinha o nome do colega Henrique e o tanto que a Mena falara da irmã estudiosa premiada e viajada no navio.
- Lembras-te quando fomos para Lisboa no ano passado? – Perguntou a mãe. – Fomos nesse mesmo navio.
Lara não se lembrava em particular do barco. Já tinha estado em tantos que nem lhe sabia os nomes. Uns maiores, nas viagens a Lisboa e Lourenço Marques, outros menores para Moçamedes ou Luanda e outro menor ainda, do pai, para passeios curtos pela costa, aos domingos: Damba Maria, Benguela, Caota, Baía Azul, Baía Farta, ou para norte, Egipto Praia, Novo Redondo.
Havia também um barquito pequeno, do irmão mais velho, mas nesse não a deixavam nem chegar perto, a menos que estivesse em terra. Ao entardecer o irmão empurrava-o para a água e saia a remar até meio da baía, onde à distância fumava, às escondidas pensava ele, um ou outro cigarro. Uma vez quase tinha engolido o cigarro porque na distracção nem vira um navio aproximar-se, foi o que Lara lhe ouviu contar a um amigo. O irmão implorou-lhe o silêncio, que os pais jamais imaginassem, e Lara anuiu.
Das idas a Lisboa, mais do que navios, lembrava-se do cão Franjinhas que passava a preto e branco na televisão da Metrópole, quer se estivesse em Lisboa ou Porto, lugares onde mais ia. Nas lojas de brinquedos havia-os lá, em todas as cores. Lara tinha um cor-de-rosa. Desde o segredo do irmão que ele tinha parado de a provocar por os cães não serem cor-de-rosa. Chegou mesmo a dizer que “até era engraçado um cão rosa”.
- O Dani também ganhou uma bolsa de estudos e foi para Lisboa há três meses, pelos vistos na mesma viagem da irmã dessa tua colega. – Acrescentou a mãe.
E foi buscar um álbum de fotografias.
Uma foto de Lara a segurar o leme de um navio, o leme maior que ela. Depois outra de Lara com o comandante do navio, de farda branca e um chapéu branco na mão, outra no convés com a mãe e outras mais.
- Já lembro. Aqui foi quando eu guiei o barco. – Disse Lara apontando a foto do leme.
- Sim, foi no Infante D. Henrique. – Esclareceu a mãe.
No dia seguinte Lara contava tudo isto a Teresa e Henrique que sem se aperceberem tinham a Áurea à escuta. Áurea da segunda classe tinha o fascínio das notícias, da novidade e da sua propagação, sendo que mais fascinada ficava se ela mesma pudesse ser a transmissora que deixaria os demais boquiabertos. Antes do intervalo da tarde, já praticamente toda a escola sabia que Dani, o primo de Lara também tinha ganho o prémio de estudioso, como Joana, a irmã de Mena. Mas ainda mais bombástico era o facto de Lara, sim a Lara da primeira classe, já ter guiado um navio, e logo o Infante D. Henrique. O colégio inteiro dividiu-se entre os crentes, os descrentes e os indiferentes.
Os indiferentes, uma dúzia na quarta classe já haviam comentado que “as crianças da primeira” ainda acreditam no pai Natal e algumas ainda fazem xixi na cama. Os crentes, Teresa, Henrique, quase todos da primeira classe, alguns da segunda que odiavam Mena e um ou outro da terceira, não tinham a menor dúvida que Lara tinha guiado o navio. Os demais, a maioria, tinham a certeza que Lara era mentirosa. Uns quantos foram dizer-lhe isso de caras. A filha da professora, amiga da Mena, foi até pular ao redor de Lara ao som da ladainha “és mentirosa, és muito mentirosa, a Teresa também é mentirosa e o Henrique é burro”, que repetia sem parar.
Entretanto uma menina das indiferentes da quarta, disse à filha da professora:
- Pára de gritares como uma cabrita que eu quero perguntar-lhe uma coisa.
E dirigiu-se a Lara.
- Quanto tempo guiaste o navio?
- Foi um pouquinho só, disse Lara. O guiador – referia-se ao leme – é muito grande.
- Tens a certeza que foi o Infante D. Henrique que guiaste?
- A minha mãe é que disse, ontem quando foi buscar a fotografia. Foi no ano passado.
- A tua mãe disse?
- Sim!
O recreio dividiu-se em grupinhos, “ a mãe dela é que lhe disse”, comentava-se. O intervalo acabou numa maka sem fim, com os ódios de outras causas a serem expurgados à conta de Lara e dos crentes que Lara guiara um navio. Já na sala de aula, a professora mãe da “Cabrita” – a partir desse dia, esse seria o nome – dirigiu-se à turma em geral e a Lara em particular, num exercício de estranha pedagogia para ameaçar os castigos terrenos, divinos e demoníacos a que todos os mentirosos seriam sujeitos. E como ameaça suprema, iria convocar a mãe de Lara para a informar dos “desvios” da filha. Iria também alertar as mães de outras crianças que estavam a ser influenciadas pelo mau comportamento de Lara.
Ao dizê-lo cruzou ocasionalmente o olhar com Teresa que a escutava com atenção. Teresa convenceu-se que o olhar lhe era intencionalmente dirigido e que era afirmativo. Sabia que tinha a mãe, pai, irmãos e demais família no céu e para lá não havia correios nem telefones, nem forma de ir e voltar. Apenas ir, um dia quando Deus quisesse e precisasse dos nós. Era assim que lhe havia dito o pai que conhecia, o branco e velho Gonçalves. O pai negro estava no céu. A mãe também e não tinha nenhuma mãe branca ou negra ou de que cor fosse que estivesse na terra. Só tinha uma mãe e no céu. Ficou feliz de saber que a professora ia falar com ela. Também queria falar com ela, mas como isso seria possível? Foi uma complicação na sua cabeça e sem mais pensar perguntou à professora:
- Senhora Professora, como vai falar com a minha mãe?
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Glossário:
. Maka – confusão, discussão, desentendimento.
. Pai Natal – Papai Noel.
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Notas:
1. Nomes de cidades – Em Angola: Novo Redondo, actual Sumbe; Moçamedes, actual Mamibe. Em Moçambique: Lourenço Marques, actual Maputo, capital.
2. Ensino primário em classes de primeira a quarta, em geral dos 6 aos 9 anos de idade.
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Mais tarde em casa, Lara contava à mãe o que ela e Teresa seriam quando crescessem, a história do navio que tinha o nome do colega Henrique e o tanto que a Mena falara da irmã estudiosa premiada e viajada no navio.
- Lembras-te quando fomos para Lisboa no ano passado? – Perguntou a mãe. – Fomos nesse mesmo navio.
Lara não se lembrava em particular do barco. Já tinha estado em tantos que nem lhe sabia os nomes. Uns maiores, nas viagens a Lisboa e Lourenço Marques, outros menores para Moçamedes ou Luanda e outro menor ainda, do pai, para passeios curtos pela costa, aos domingos: Damba Maria, Benguela, Caota, Baía Azul, Baía Farta, ou para norte, Egipto Praia, Novo Redondo.
Havia também um barquito pequeno, do irmão mais velho, mas nesse não a deixavam nem chegar perto, a menos que estivesse em terra. Ao entardecer o irmão empurrava-o para a água e saia a remar até meio da baía, onde à distância fumava, às escondidas pensava ele, um ou outro cigarro. Uma vez quase tinha engolido o cigarro porque na distracção nem vira um navio aproximar-se, foi o que Lara lhe ouviu contar a um amigo. O irmão implorou-lhe o silêncio, que os pais jamais imaginassem, e Lara anuiu.
Das idas a Lisboa, mais do que navios, lembrava-se do cão Franjinhas que passava a preto e branco na televisão da Metrópole, quer se estivesse em Lisboa ou Porto, lugares onde mais ia. Nas lojas de brinquedos havia-os lá, em todas as cores. Lara tinha um cor-de-rosa. Desde o segredo do irmão que ele tinha parado de a provocar por os cães não serem cor-de-rosa. Chegou mesmo a dizer que “até era engraçado um cão rosa”.
- O Dani também ganhou uma bolsa de estudos e foi para Lisboa há três meses, pelos vistos na mesma viagem da irmã dessa tua colega. – Acrescentou a mãe.
E foi buscar um álbum de fotografias.
Uma foto de Lara a segurar o leme de um navio, o leme maior que ela. Depois outra de Lara com o comandante do navio, de farda branca e um chapéu branco na mão, outra no convés com a mãe e outras mais.
- Já lembro. Aqui foi quando eu guiei o barco. – Disse Lara apontando a foto do leme.
- Sim, foi no Infante D. Henrique. – Esclareceu a mãe.
No dia seguinte Lara contava tudo isto a Teresa e Henrique que sem se aperceberem tinham a Áurea à escuta. Áurea da segunda classe tinha o fascínio das notícias, da novidade e da sua propagação, sendo que mais fascinada ficava se ela mesma pudesse ser a transmissora que deixaria os demais boquiabertos. Antes do intervalo da tarde, já praticamente toda a escola sabia que Dani, o primo de Lara também tinha ganho o prémio de estudioso, como Joana, a irmã de Mena. Mas ainda mais bombástico era o facto de Lara, sim a Lara da primeira classe, já ter guiado um navio, e logo o Infante D. Henrique. O colégio inteiro dividiu-se entre os crentes, os descrentes e os indiferentes.
Os indiferentes, uma dúzia na quarta classe já haviam comentado que “as crianças da primeira” ainda acreditam no pai Natal e algumas ainda fazem xixi na cama. Os crentes, Teresa, Henrique, quase todos da primeira classe, alguns da segunda que odiavam Mena e um ou outro da terceira, não tinham a menor dúvida que Lara tinha guiado o navio. Os demais, a maioria, tinham a certeza que Lara era mentirosa. Uns quantos foram dizer-lhe isso de caras. A filha da professora, amiga da Mena, foi até pular ao redor de Lara ao som da ladainha “és mentirosa, és muito mentirosa, a Teresa também é mentirosa e o Henrique é burro”, que repetia sem parar.
Entretanto uma menina das indiferentes da quarta, disse à filha da professora:
- Pára de gritares como uma cabrita que eu quero perguntar-lhe uma coisa.
E dirigiu-se a Lara.
- Quanto tempo guiaste o navio?
- Foi um pouquinho só, disse Lara. O guiador – referia-se ao leme – é muito grande.
- Tens a certeza que foi o Infante D. Henrique que guiaste?
- A minha mãe é que disse, ontem quando foi buscar a fotografia. Foi no ano passado.
- A tua mãe disse?
- Sim!
O recreio dividiu-se em grupinhos, “ a mãe dela é que lhe disse”, comentava-se. O intervalo acabou numa maka sem fim, com os ódios de outras causas a serem expurgados à conta de Lara e dos crentes que Lara guiara um navio. Já na sala de aula, a professora mãe da “Cabrita” – a partir desse dia, esse seria o nome – dirigiu-se à turma em geral e a Lara em particular, num exercício de estranha pedagogia para ameaçar os castigos terrenos, divinos e demoníacos a que todos os mentirosos seriam sujeitos. E como ameaça suprema, iria convocar a mãe de Lara para a informar dos “desvios” da filha. Iria também alertar as mães de outras crianças que estavam a ser influenciadas pelo mau comportamento de Lara.
Ao dizê-lo cruzou ocasionalmente o olhar com Teresa que a escutava com atenção. Teresa convenceu-se que o olhar lhe era intencionalmente dirigido e que era afirmativo. Sabia que tinha a mãe, pai, irmãos e demais família no céu e para lá não havia correios nem telefones, nem forma de ir e voltar. Apenas ir, um dia quando Deus quisesse e precisasse dos nós. Era assim que lhe havia dito o pai que conhecia, o branco e velho Gonçalves. O pai negro estava no céu. A mãe também e não tinha nenhuma mãe branca ou negra ou de que cor fosse que estivesse na terra. Só tinha uma mãe e no céu. Ficou feliz de saber que a professora ia falar com ela. Também queria falar com ela, mas como isso seria possível? Foi uma complicação na sua cabeça e sem mais pensar perguntou à professora:
- Senhora Professora, como vai falar com a minha mãe?
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Glossário:
. Maka – confusão, discussão, desentendimento.
. Pai Natal – Papai Noel.
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Notas:
1. Nomes de cidades – Em Angola: Novo Redondo, actual Sumbe; Moçamedes, actual Mamibe. Em Moçambique: Lourenço Marques, actual Maputo, capital.
2. Ensino primário em classes de primeira a quarta, em geral dos 6 aos 9 anos de idade.
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domingo, 1 de abril de 2007
7. O navegador
.
- Elisa Joaninha presta atenção nas contas! – Dizia Teresa à boneca, com a voz a imitar a professora – atenção, muita atençãooo, ouviste?!
Para assuntos sérios, o nome da boneca era Elisa Joaninha. Para os ainda mais sérios, simplesmente Joaninha. Nos demais, chama-se somente Elisa. Mas não havia jeito! Elisa Joaninha era um caso perdido nas contas e por vezes Teresa perdia a paciência com ela. Depois, para a compensar, fazia-lhe bolinhos com pedaços de cenoura crua e açúcar mascavado, que a cozinheira Domingas lhe ensinara. Elisa Joaninha apreciava os bolos, que Teresa comia, mas nem assim as contas saíam certas. Na realidade, Teresa também não tinha como avaliar a boneca, porque contas não eram com ela. Estava há um mês na escola, cantava sem engasgos as tabuadas do 2, 3 e 4, mas ainda não entendera exactamente o que fazer com a cantilena ou sequer suspeitava o que a música e as contas poderiam ter em comum.
Era domingo, sol e calor. Mais tarde iam todas as crianças passear com o avô Antunes que andava lá pelo escritório à procura de uns papéis para encadernar uns selos da sua colecção. Quando as crianças queriam ver os selos, de longe, podiam ir contemplar o avô em arrumações metódicas, disciplinadas e muito chatas. Teresa viu uma vez e desistiu, tal como os seus colegas, à excepção de Norberto que era assíduo. Gostava daquilo, dos pormenores e da minúcia dos preparos, bem mais do que dos desenhos ou figuras estampadas nos selos. Além disso, mantinha-se quieto, o que sem dúvida agradava ao avô quando o assunto era os seus selos. Nisto, o avô com ar satisfeito encontrou o que procurava e juntamente uns quantos cartões postais de que já não estava lembrado.
- Vai lá chamar os outros. – Disse a Norberto.
Norberto foi. Voltou minutos depois acompanhado com Teresa, Henrique, Renato e Helena.
- Postais do Infante D. Henrique. - Disse o avô, enquanto distribuía pelas crianças cartões iguais, com a fotografia de um navio grande.
- Do Henrique? – Perguntou Teresa olhando para o Henrique ao seu lado.
- Do Infante D. Henrique. – Papagueou Norberto.
- Renato lê aqui. – Disse o avô entregando um livro aberto, que folheara entretanto.
- “Henrique D., o navegador. Nê 4 de Março de 1, 3, 9, 4. Fê 12 de Novembro de 1, 4, 6, 0. Infante de Portugal, filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre...” – Soletrava Renato de cara enfiada dentro do livro.
- Nascido em 1394 e falecido em 1460. – Esclareceu o avô acerca dos nê e fê seguidos dos algarismos lidos por Renato, um a um. Coisa que de nada serviu porque as crianças não tinham a menor noção sobre tais números.
Depois contou-lhes um pouco da história de D. Henrique e da razão de um navio com capacidade de transportar mais de mil passageiros, ter esse nome. O pequeno Henrique deleitou-se de haver com o seu nome, um navio e um homem antigo importante para o mundo e quis ficar com o livro onde sobre o tal homem se contava. Norberto perguntou se o avô tinha um selo do homem navegador. Teresa disse que queria ir ver o barco. Renato disse que ia fazer um desenho com navios maiores que aquele e Helena informou que iria escrever atrás no postal e enviá-lo às primas da Metrópole. O avô prometeu a Teresa que a levaria a ver o navio, quando ele voltasse ao porto da cidade. E sugeriu que ela perguntasse coisas do navio à Mena da segunda classe, que já o tinha visto.
Alguns dias depois Teresa perguntou. Mena, contava grandiosidades do navio, destacando sempre que nele fora a sua irmã Joana por ter ganho o prémio de ser boa estudante, como ela própria também já era. Mena e a restante família tinham ido despedir-se da Joana Ribas ao cais, três meses antes. O prémio da irmã, fazia-a crer que um qualquer desígnio divino a tinha colocado acima dos comuns mortais da sua idade e no centro das atenções de alguns adultos. Os demais não lhe davam importância porque seriam ignorantes, no seu entender, e só por isso eram incapazes de ver o quanto ela se destacava pela vitória fraterna. Rapidamente a seu ver, Teresa entrou para o grupo dos estúpidos que não sabem nada de nada, porque se interessou bem mais pelo navio do que pelo prémio, a premiada ou os sucessos presentes e futuros de Mena. Desse incauto grupo faziam também parte Henrique e Lara, a amiga de quem Teresa mais gostava e a quem já tinha falado de Kwadi. Partilhavam-lhe a companhia, na imaginação infantil. A amizade, tinham-na. Quando crescessem haviam de viajar com Kwadi até à tribo. E umas vezes iam de comboio, outras de avião e outras iam de navio. Henrique interrompeu-lhes a brincadeira do intervalo no colégio.
- Quando for grande, vou ser navegador!
Lara e Teresa acenaram-lhe afirmativamente e disseram que iam ser aviadoras, para voarem com os flamingos.
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- Elisa Joaninha presta atenção nas contas! – Dizia Teresa à boneca, com a voz a imitar a professora – atenção, muita atençãooo, ouviste?!
Para assuntos sérios, o nome da boneca era Elisa Joaninha. Para os ainda mais sérios, simplesmente Joaninha. Nos demais, chama-se somente Elisa. Mas não havia jeito! Elisa Joaninha era um caso perdido nas contas e por vezes Teresa perdia a paciência com ela. Depois, para a compensar, fazia-lhe bolinhos com pedaços de cenoura crua e açúcar mascavado, que a cozinheira Domingas lhe ensinara. Elisa Joaninha apreciava os bolos, que Teresa comia, mas nem assim as contas saíam certas. Na realidade, Teresa também não tinha como avaliar a boneca, porque contas não eram com ela. Estava há um mês na escola, cantava sem engasgos as tabuadas do 2, 3 e 4, mas ainda não entendera exactamente o que fazer com a cantilena ou sequer suspeitava o que a música e as contas poderiam ter em comum.
Era domingo, sol e calor. Mais tarde iam todas as crianças passear com o avô Antunes que andava lá pelo escritório à procura de uns papéis para encadernar uns selos da sua colecção. Quando as crianças queriam ver os selos, de longe, podiam ir contemplar o avô em arrumações metódicas, disciplinadas e muito chatas. Teresa viu uma vez e desistiu, tal como os seus colegas, à excepção de Norberto que era assíduo. Gostava daquilo, dos pormenores e da minúcia dos preparos, bem mais do que dos desenhos ou figuras estampadas nos selos. Além disso, mantinha-se quieto, o que sem dúvida agradava ao avô quando o assunto era os seus selos. Nisto, o avô com ar satisfeito encontrou o que procurava e juntamente uns quantos cartões postais de que já não estava lembrado.
- Vai lá chamar os outros. – Disse a Norberto.
Norberto foi. Voltou minutos depois acompanhado com Teresa, Henrique, Renato e Helena.
- Postais do Infante D. Henrique. - Disse o avô, enquanto distribuía pelas crianças cartões iguais, com a fotografia de um navio grande.
- Do Henrique? – Perguntou Teresa olhando para o Henrique ao seu lado.
- Do Infante D. Henrique. – Papagueou Norberto.
- Renato lê aqui. – Disse o avô entregando um livro aberto, que folheara entretanto.
- “Henrique D., o navegador. Nê 4 de Março de 1, 3, 9, 4. Fê 12 de Novembro de 1, 4, 6, 0. Infante de Portugal, filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre...” – Soletrava Renato de cara enfiada dentro do livro.
- Nascido em 1394 e falecido em 1460. – Esclareceu o avô acerca dos nê e fê seguidos dos algarismos lidos por Renato, um a um. Coisa que de nada serviu porque as crianças não tinham a menor noção sobre tais números.
Depois contou-lhes um pouco da história de D. Henrique e da razão de um navio com capacidade de transportar mais de mil passageiros, ter esse nome. O pequeno Henrique deleitou-se de haver com o seu nome, um navio e um homem antigo importante para o mundo e quis ficar com o livro onde sobre o tal homem se contava. Norberto perguntou se o avô tinha um selo do homem navegador. Teresa disse que queria ir ver o barco. Renato disse que ia fazer um desenho com navios maiores que aquele e Helena informou que iria escrever atrás no postal e enviá-lo às primas da Metrópole. O avô prometeu a Teresa que a levaria a ver o navio, quando ele voltasse ao porto da cidade. E sugeriu que ela perguntasse coisas do navio à Mena da segunda classe, que já o tinha visto.
Alguns dias depois Teresa perguntou. Mena, contava grandiosidades do navio, destacando sempre que nele fora a sua irmã Joana por ter ganho o prémio de ser boa estudante, como ela própria também já era. Mena e a restante família tinham ido despedir-se da Joana Ribas ao cais, três meses antes. O prémio da irmã, fazia-a crer que um qualquer desígnio divino a tinha colocado acima dos comuns mortais da sua idade e no centro das atenções de alguns adultos. Os demais não lhe davam importância porque seriam ignorantes, no seu entender, e só por isso eram incapazes de ver o quanto ela se destacava pela vitória fraterna. Rapidamente a seu ver, Teresa entrou para o grupo dos estúpidos que não sabem nada de nada, porque se interessou bem mais pelo navio do que pelo prémio, a premiada ou os sucessos presentes e futuros de Mena. Desse incauto grupo faziam também parte Henrique e Lara, a amiga de quem Teresa mais gostava e a quem já tinha falado de Kwadi. Partilhavam-lhe a companhia, na imaginação infantil. A amizade, tinham-na. Quando crescessem haviam de viajar com Kwadi até à tribo. E umas vezes iam de comboio, outras de avião e outras iam de navio. Henrique interrompeu-lhes a brincadeira do intervalo no colégio.
- Quando for grande, vou ser navegador!
Lara e Teresa acenaram-lhe afirmativamente e disseram que iam ser aviadoras, para voarem com os flamingos.
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quarta-feira, 28 de março de 2007
6. Os ganhadores
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Kwadi gostava de ficar no pequeno lago perto da estação, tanto que já começava a enraizar-se na pedra onde se sentava desde que chegara à cidade, no mesmo dia que Teresa. Além do fresco, ali aprendia muita coisa, bem mais do que na longa e demorada caminhada, que fizera da tribo até à cidade. Tal como Teresa, e as bonecas, Kwadi já sabia contar, mas bem mais. Contava em português e em umbundo até à dúzia. Um catete, dois cavali, três catatu, quatro cakwãla, cinco catãlo, seis cepandu, sete cepandu vali, oito celelãla, nove ceciya, dez cekwe, onze cekwi la mosi, doze cekwi la vali. Era o que ouvia repetidamente, da quitandeira que passava à tarde com o cesto de camarões ainda a espernearem, e de novo, mais tarde com a quitanda vazia.
Logo depois da segunda rua que estava atrás do pequeno lago, era a praia com a areia em duna, como um pequeno morro. Poucos eram os que para ali iam esticar-se ao sol ou nadar. Era mais uma praia de peixe, de pequenos negócios de mar. A meio da manhã e a meio da tarde chegavam os barcos de pesca, que tinham ido até mais ao largo do Atlântico. Os pescadores puxavam as redes e as quitandeiras aguardavam para encher os seus cestos com peixe ou camarão ou um pouco de tudo. Depois, espalhavam-se pelas redondezas até terem a quitanda fazia e os dinheiros num lenço que enfiavam entre o peito.
Déte, a quitandeira, fazia as contas sentada na borda do lago em cuja pedra Kwadi sentava. Contava os dinheiros à sua frente e por vezes falava-lhe de coisas da vida, do peixe, dos custos das coisas no armazém e do marido que trabalhava no porto mas não sabia segurar o dinheiro. Tinha dois filhos na escola e um mais pequeno que ficava com a avó enquanto Déte vendia os camarões. Vendia rápido. O mais que demorava era de casa até à praia e depois a voltar para casa. Não tinha a felicidade de outras quitandeiras que moravam mais perto do negócio. As da Cabaia é que têm sorte, pegam o peixe lá mesmo e vão vender no Compão que é perto – disse a Kwadi, uma vez. Ela morava na Bela Vista e vinha ali ao negócio, porque tinha um maximbombo linha directa. Mas tinha de lavar a quitanda para a volta, senão não a deixavam entrar. E gastava dinheiro na viagem.
Queria mudar-se para a Cabaia, para não gastar no maximbombo. Mas na escola do Compão não havia ainda lugar para os dois filhos estudantes e Déte não concebia a ideia de os deixar fora da escola. Acreditava que pelo menos um deles iria ser bom aluno e ganhar o prémio de estudar na Metrópole que o presidente dava. Na verdade não sabia bem qual o presidente que dava ou exactamente o que dava, mas estava confiante no tal prémio porque conhecia a família de um que o tinha ganho. O estudioso era o Kalô Neves, um moço de óculos que logo após a festa do seu mérito lá na sanzala, partira para a Metrópole a expensas do Estado, com mais dois brancos de segunda, também de óculos. O Lito Ortega arraçado de espanhol pelo lado da avó materna e o Dani de Sá, quarta geração de portugueses em Angola.
À época, a bolsa de estudos era atribuída exclusivamente ao mérito e não a carência económica ou de qualquer ordem. Oferecia ainda a vantagem de ser praticamente um passe para longe da guerra e das obrigações militares inerentes a qualquer mancebo, mais ainda dos nascidos em África. Kalô, Lito e Dani conheceram-se no cais, à entrada do navio e lá foram à aventura nos seus pouco mais de quinze anos e o quinto ano dos liceus concluído. Que tinham ido os três no mesmo barco, Déte tinha certeza porque se dera ao trabalho de vir lá do morro da Bela Vista até ao porto verificar se o Kalô ia ou não ia no navio. E foi mesmo! Ia todo bem empacotado, feito um calcinhas, no fato que usava na missa de domingo, e no dia em que teve os exames importantes que lhe fizeram ganhar a bolsa.
O Padre António comprara-lhe o fato com o dinheiro de Deus – dizia Déte. Além disso, o religioso acompanhara Kalô até ao porto, junto com a família, um ou outro amigo e alguns vizinhos curiosos como a quitandeira. Pouco depois dos moços subirem a escada do navio chegou em alvoroço uma família de mulatos que se despediam às pressas da Joana Ribas outra das ganhadoras, que se atrasara a marcar presença no navio. Mas ainda assim, também foi de viagem, com toda a família a acenar do cais, de braços no ar, até quase o navio passar para lá das Portas do Mar.
Kwadi ia contar à quitandeira que conhecia Teresa que tinha vindo para a escola, e no entender de Kwadi também havia de ganhar o tal prémio, quando tivesse a idade do Kalô e dos outros que Déte falava, mas esta saiu em correria a gritar:
- Aiué maximbombo, espera, espera, mamauéé.
O maximbombo esperou, Déte subiu e lá foi aiué...
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Glossário:
. Maximbombo – ónibus, autocarro.
. Quitanda (ou kitanda) – cesto ou espaço onde estão ou estarão coisas, geralmente mantimentos frescos para negócio.
. Quitandeira(o) (ou kitandeira(o)) – pessoa que usa a quitanda no exercício de um negócio frequente.
. Sanzala – bairro de habitações modestas.
. Umbundu – uma das línguas de Angola, a segunda em número de falantes, a seguir à língua oficial, o português, e de maior incidência na região centro e sul do país.
. Um calcinhas – termo usado para referir um indivíduo do sexo masculino bem vestido quando isso é raro nele, em situação que parece inadaptado a essa roupa melhor ou mais fina.
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Kwadi gostava de ficar no pequeno lago perto da estação, tanto que já começava a enraizar-se na pedra onde se sentava desde que chegara à cidade, no mesmo dia que Teresa. Além do fresco, ali aprendia muita coisa, bem mais do que na longa e demorada caminhada, que fizera da tribo até à cidade. Tal como Teresa, e as bonecas, Kwadi já sabia contar, mas bem mais. Contava em português e em umbundo até à dúzia. Um catete, dois cavali, três catatu, quatro cakwãla, cinco catãlo, seis cepandu, sete cepandu vali, oito celelãla, nove ceciya, dez cekwe, onze cekwi la mosi, doze cekwi la vali. Era o que ouvia repetidamente, da quitandeira que passava à tarde com o cesto de camarões ainda a espernearem, e de novo, mais tarde com a quitanda vazia.
Logo depois da segunda rua que estava atrás do pequeno lago, era a praia com a areia em duna, como um pequeno morro. Poucos eram os que para ali iam esticar-se ao sol ou nadar. Era mais uma praia de peixe, de pequenos negócios de mar. A meio da manhã e a meio da tarde chegavam os barcos de pesca, que tinham ido até mais ao largo do Atlântico. Os pescadores puxavam as redes e as quitandeiras aguardavam para encher os seus cestos com peixe ou camarão ou um pouco de tudo. Depois, espalhavam-se pelas redondezas até terem a quitanda fazia e os dinheiros num lenço que enfiavam entre o peito.
Déte, a quitandeira, fazia as contas sentada na borda do lago em cuja pedra Kwadi sentava. Contava os dinheiros à sua frente e por vezes falava-lhe de coisas da vida, do peixe, dos custos das coisas no armazém e do marido que trabalhava no porto mas não sabia segurar o dinheiro. Tinha dois filhos na escola e um mais pequeno que ficava com a avó enquanto Déte vendia os camarões. Vendia rápido. O mais que demorava era de casa até à praia e depois a voltar para casa. Não tinha a felicidade de outras quitandeiras que moravam mais perto do negócio. As da Cabaia é que têm sorte, pegam o peixe lá mesmo e vão vender no Compão que é perto – disse a Kwadi, uma vez. Ela morava na Bela Vista e vinha ali ao negócio, porque tinha um maximbombo linha directa. Mas tinha de lavar a quitanda para a volta, senão não a deixavam entrar. E gastava dinheiro na viagem.
Queria mudar-se para a Cabaia, para não gastar no maximbombo. Mas na escola do Compão não havia ainda lugar para os dois filhos estudantes e Déte não concebia a ideia de os deixar fora da escola. Acreditava que pelo menos um deles iria ser bom aluno e ganhar o prémio de estudar na Metrópole que o presidente dava. Na verdade não sabia bem qual o presidente que dava ou exactamente o que dava, mas estava confiante no tal prémio porque conhecia a família de um que o tinha ganho. O estudioso era o Kalô Neves, um moço de óculos que logo após a festa do seu mérito lá na sanzala, partira para a Metrópole a expensas do Estado, com mais dois brancos de segunda, também de óculos. O Lito Ortega arraçado de espanhol pelo lado da avó materna e o Dani de Sá, quarta geração de portugueses em Angola.
À época, a bolsa de estudos era atribuída exclusivamente ao mérito e não a carência económica ou de qualquer ordem. Oferecia ainda a vantagem de ser praticamente um passe para longe da guerra e das obrigações militares inerentes a qualquer mancebo, mais ainda dos nascidos em África. Kalô, Lito e Dani conheceram-se no cais, à entrada do navio e lá foram à aventura nos seus pouco mais de quinze anos e o quinto ano dos liceus concluído. Que tinham ido os três no mesmo barco, Déte tinha certeza porque se dera ao trabalho de vir lá do morro da Bela Vista até ao porto verificar se o Kalô ia ou não ia no navio. E foi mesmo! Ia todo bem empacotado, feito um calcinhas, no fato que usava na missa de domingo, e no dia em que teve os exames importantes que lhe fizeram ganhar a bolsa.
O Padre António comprara-lhe o fato com o dinheiro de Deus – dizia Déte. Além disso, o religioso acompanhara Kalô até ao porto, junto com a família, um ou outro amigo e alguns vizinhos curiosos como a quitandeira. Pouco depois dos moços subirem a escada do navio chegou em alvoroço uma família de mulatos que se despediam às pressas da Joana Ribas outra das ganhadoras, que se atrasara a marcar presença no navio. Mas ainda assim, também foi de viagem, com toda a família a acenar do cais, de braços no ar, até quase o navio passar para lá das Portas do Mar.
Kwadi ia contar à quitandeira que conhecia Teresa que tinha vindo para a escola, e no entender de Kwadi também havia de ganhar o tal prémio, quando tivesse a idade do Kalô e dos outros que Déte falava, mas esta saiu em correria a gritar:
- Aiué maximbombo, espera, espera, mamauéé.
O maximbombo esperou, Déte subiu e lá foi aiué...
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Glossário:
. Maximbombo – ónibus, autocarro.
. Quitanda (ou kitanda) – cesto ou espaço onde estão ou estarão coisas, geralmente mantimentos frescos para negócio.
. Quitandeira(o) (ou kitandeira(o)) – pessoa que usa a quitanda no exercício de um negócio frequente.
. Sanzala – bairro de habitações modestas.
. Umbundu – uma das línguas de Angola, a segunda em número de falantes, a seguir à língua oficial, o português, e de maior incidência na região centro e sul do país.
. Um calcinhas – termo usado para referir um indivíduo do sexo masculino bem vestido quando isso é raro nele, em situação que parece inadaptado a essa roupa melhor ou mais fina.
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terça-feira, 27 de março de 2007
5. O cinema
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Teresa tinha gostado da viagem de comboio. Não tinha sido a sua primeira, mas fora a maior, muito maior de todas as suas viagens. Agora no Lobito, já lhe falaram dos barcos grandes, grandes, mas ainda não os vira. Ouvia-os apenas, no som rouco e forte, a anunciarem chegadas e partidas. Vira os aviões a voarem sobre a cidade. Coisas pequenas lá muito em cima. Na fazenda não se viam. Nem os flamingos que pareciam maiores que os aviões lá no céu. E mais bonitos, cor de rosa. Não são “bem cor de rosa”, dissera-lhe o Henrique, seu colega de hospedagem na casa da “Senhora Directora”. O Henrique tinha sete anos, estava na segunda classe, não era bom estudante, nos dizeres da directora. Mas era um menino bom e esforçado. Não dava é mais, coitadinho – dizia também a directora.
A casa da directora era no Lobito Velho, um bairro da cidade mais perto dos morros, do outro lado da baía, contrário ao do porto e da estação de comboios. Um casarão antigo, com um grande quintal fechado por muros altos, a esconder a horta, o pomar, o galinheiro e os anexos onde moravam a lavadeira, a cozinheira, o horteleiro, suas famílias e também o enteado da directora, que tinha dezanove anos e era a cruz que ela tinha de carregar, como costumava lamentar-se. Era o Jorginho. Tinha, no entender da directora, dois hábitos nefastos: a indisciplina e a soberba. Além disso, gostava de dizer aos hóspedes infantis que a madrasta directora era uma bruxa má e os iria meter dentro do fogão, para os cozinhar e encher a barriga dos jacarés do rio Catumbela.
De início, Teresa preocupou-se com esta história, mas cedo se apercebeu que a directora não era assídua da cozinha. Além disso, a cozinheira Domingas dissera-lhe que ela era bruxa má sim senhora, mas não sabia cozinhar. Informara também, que enquanto dona da cozinha, ela Domingas, não deixaria que lhe estragassem o fogão com meninos lá dentro. Já eram crianças grandes, não cabiam num fogão daqueles. Teresa sossegara! O Henrique corroborara. E depois, já lá estava há mais dum ano e continuava longe da barriga dos jacarés, mesmo não sendo um bom estudante.
Também há mais de um ano, estavam na casa da directora o Renato e o Norberto. Havia ainda a Helena mais crescida e muito boazinha para Teresa. Estava na quarta classe, tinha nove anos e no ano seguinte iria continuar os estudos na Metrópole, num colégio interno de Madres religiosas. Teresa dividia o quarto com ela. Os meninos tinham outro quarto. Tinham vindo todos de fazendas no interior, mas não se conheciam antes de ali chegarem. De manhã cedo iam todos num carro grande para o colégio, não muito longe. Pouco depois do meio dia, regressavam para almoçar e voltavam ao colégio antes das duas da tarde. Às cinco acabava a escola, mas ainda tinham de fazer os “deveres” e estudar sob a supervisão da directora ou da Menina Judite, depois do lanche até à hora do jantar.
Isso era feito já em casa, na sala de estudos que tal como a sala da directora no colégio, estava forrada com estantes cheias de livros, quase todos sem figuras nem desenhos. A Menina Judite era uma professora do colégio, solteira, que morava na casa da directora desde que chegara da Metrópole há 3 anos. Teresa achava que ela não era bruxa como a directora. Os meninos, a Helena e a cozinheira Domingas concordavam. Jorginho também concordava, mas neste assunto, sorria sempre de um modo trocista. O marido da directora, senhor Antunes, também morava lá em casa. Era um avô bonzinho que lhes trazia rebuçados às escondidas da bruxa má e os levava ao cinema, às vezes. Teresa já tinha ido uma vez, num domingo à tarde. Esta era sua terceira semana no Lobito. Aos sábados de manhã havia escola. De tarde tinham deveres de escola e de casa. Domingo de manhã iam todos à missa na Caponte e de tarde brincavam ou passeavam com o avô Antunes, que era mais novo que o pai da Teresa.
O cinema – filme, corrigiu o Renato – que Teresa foi ver era a preto e branco com um homenzinho de bigode pequeno que andava com os pés de lado e tinha uma bengala que rodava todo o tempo. Havia um menino que era pobre e um cãozinho. Filme do Cháárlôu repetira-lhe Helena, que sabia das coisas. Seja! Teresa gostou desse “cinema” – persistiu! – apesar de ter ficado triste quando o menino também ficou. Chorou muito, saiu do cinema com os olhos inchados e finou a mágoa a ensopar um pacotinho de pipocas caramelizadas. Outras vezes ficara triste por estar longe da fazenda, do pai e do gato Bolinha. Dormia com as duas bonecas Elisa e Luzia, que pareciam felizes por estarem na cidade. Elisa já sabia contar até 6, devagar, e Luzia mais esperta contava até 9 sem se enganar. Luzia era boa estudante quando Teresa brincava de professora. Elisa era como o Henrique, boazinha e esforçada. Por vezes, em pensamento, o menino grande da estação também vinha brincar.
Então, o brilho nos olhos de Teresa ganhava dos meninos de Lucanda na chegada do comboio.
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Teresa tinha gostado da viagem de comboio. Não tinha sido a sua primeira, mas fora a maior, muito maior de todas as suas viagens. Agora no Lobito, já lhe falaram dos barcos grandes, grandes, mas ainda não os vira. Ouvia-os apenas, no som rouco e forte, a anunciarem chegadas e partidas. Vira os aviões a voarem sobre a cidade. Coisas pequenas lá muito em cima. Na fazenda não se viam. Nem os flamingos que pareciam maiores que os aviões lá no céu. E mais bonitos, cor de rosa. Não são “bem cor de rosa”, dissera-lhe o Henrique, seu colega de hospedagem na casa da “Senhora Directora”. O Henrique tinha sete anos, estava na segunda classe, não era bom estudante, nos dizeres da directora. Mas era um menino bom e esforçado. Não dava é mais, coitadinho – dizia também a directora.
A casa da directora era no Lobito Velho, um bairro da cidade mais perto dos morros, do outro lado da baía, contrário ao do porto e da estação de comboios. Um casarão antigo, com um grande quintal fechado por muros altos, a esconder a horta, o pomar, o galinheiro e os anexos onde moravam a lavadeira, a cozinheira, o horteleiro, suas famílias e também o enteado da directora, que tinha dezanove anos e era a cruz que ela tinha de carregar, como costumava lamentar-se. Era o Jorginho. Tinha, no entender da directora, dois hábitos nefastos: a indisciplina e a soberba. Além disso, gostava de dizer aos hóspedes infantis que a madrasta directora era uma bruxa má e os iria meter dentro do fogão, para os cozinhar e encher a barriga dos jacarés do rio Catumbela.
De início, Teresa preocupou-se com esta história, mas cedo se apercebeu que a directora não era assídua da cozinha. Além disso, a cozinheira Domingas dissera-lhe que ela era bruxa má sim senhora, mas não sabia cozinhar. Informara também, que enquanto dona da cozinha, ela Domingas, não deixaria que lhe estragassem o fogão com meninos lá dentro. Já eram crianças grandes, não cabiam num fogão daqueles. Teresa sossegara! O Henrique corroborara. E depois, já lá estava há mais dum ano e continuava longe da barriga dos jacarés, mesmo não sendo um bom estudante.
Também há mais de um ano, estavam na casa da directora o Renato e o Norberto. Havia ainda a Helena mais crescida e muito boazinha para Teresa. Estava na quarta classe, tinha nove anos e no ano seguinte iria continuar os estudos na Metrópole, num colégio interno de Madres religiosas. Teresa dividia o quarto com ela. Os meninos tinham outro quarto. Tinham vindo todos de fazendas no interior, mas não se conheciam antes de ali chegarem. De manhã cedo iam todos num carro grande para o colégio, não muito longe. Pouco depois do meio dia, regressavam para almoçar e voltavam ao colégio antes das duas da tarde. Às cinco acabava a escola, mas ainda tinham de fazer os “deveres” e estudar sob a supervisão da directora ou da Menina Judite, depois do lanche até à hora do jantar.
Isso era feito já em casa, na sala de estudos que tal como a sala da directora no colégio, estava forrada com estantes cheias de livros, quase todos sem figuras nem desenhos. A Menina Judite era uma professora do colégio, solteira, que morava na casa da directora desde que chegara da Metrópole há 3 anos. Teresa achava que ela não era bruxa como a directora. Os meninos, a Helena e a cozinheira Domingas concordavam. Jorginho também concordava, mas neste assunto, sorria sempre de um modo trocista. O marido da directora, senhor Antunes, também morava lá em casa. Era um avô bonzinho que lhes trazia rebuçados às escondidas da bruxa má e os levava ao cinema, às vezes. Teresa já tinha ido uma vez, num domingo à tarde. Esta era sua terceira semana no Lobito. Aos sábados de manhã havia escola. De tarde tinham deveres de escola e de casa. Domingo de manhã iam todos à missa na Caponte e de tarde brincavam ou passeavam com o avô Antunes, que era mais novo que o pai da Teresa.
O cinema – filme, corrigiu o Renato – que Teresa foi ver era a preto e branco com um homenzinho de bigode pequeno que andava com os pés de lado e tinha uma bengala que rodava todo o tempo. Havia um menino que era pobre e um cãozinho. Filme do Cháárlôu repetira-lhe Helena, que sabia das coisas. Seja! Teresa gostou desse “cinema” – persistiu! – apesar de ter ficado triste quando o menino também ficou. Chorou muito, saiu do cinema com os olhos inchados e finou a mágoa a ensopar um pacotinho de pipocas caramelizadas. Outras vezes ficara triste por estar longe da fazenda, do pai e do gato Bolinha. Dormia com as duas bonecas Elisa e Luzia, que pareciam felizes por estarem na cidade. Elisa já sabia contar até 6, devagar, e Luzia mais esperta contava até 9 sem se enganar. Luzia era boa estudante quando Teresa brincava de professora. Elisa era como o Henrique, boazinha e esforçada. Por vezes, em pensamento, o menino grande da estação também vinha brincar.
Então, o brilho nos olhos de Teresa ganhava dos meninos de Lucanda na chegada do comboio.
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